Coluna do Leandro Sarmatz: Congestão nasal, melancolia e vodca — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

Congestão nasal, melancolia e vodca

A ômicron cruzou a esquina, deu as caras e apareceu. O jeito foi empreender algumas aventuras domésticas com a prima eslava do álcool Zulu

24 de Janeiro de 2022

A realidade sempre nos atropela. Minha última coluna de 2021 trazia, com justificada euforia, a celebração da volta às festas, aos bares e aos abraços. Uma alegria que durou pouco. Ocorre que a ômicron ainda estava cruzando a esquina. Cruzou, deu as caras e apareceu. Com isso, um número cada vez maior de amigos e conhecidos tem sido contaminado. Todo mundo, me parece, ainda vai levar uma bordoada da ômicron na cabeça.

Semana passada foi a minha vez. Graças à dose de reforço da vacina, contudo, apresentei apenas alguns sintomas leves, embora em grande medida exasperantes. Espirros infindáveis, olhos e nariz congestionados, além da perda momentânea de olfato e paladar. Isso nunca tinha me acontecido. Foi uma experiência singular. Ainda não tenho certeza de que gostei ou odiei não sentir gosto ou cheiro de alimentos e bebidas.

Mas tive a oportunidade de desenvolver alguns pequenos experimentos domésticos, sendo que o mais notável deles envolve congestão nasal, melancolia e vodca. Foi mais ou menos assim. Dia 4 da ômicron devidamente instalada no meu corpo. Desânimo físico, dificuldade para ficar sem espirrar a cada cinco segundos, uma pontinha de tristeza pela vida cotidiana e suas limitações físicas e emocionais. Vida besta aqui e ali, como praticamente com todo mundo. Cai a noite e eu só quero encher a cara. Embora tenha regulado o consumo de bebida alcoólica desde a metade do ano passado – a jaca estava ganhando proporções do Anel de Nibelungo, de Wagner –, o meu espírito naquele dia estava especialmente sombrio. Eu precisava de um drinque. Minha grande ambição àquela altura era ficar bamba e cair durinho na cama, usando o álcool como um sucedâneo de Naldecon Noite: o beijo de boa noite Cinderela, a volta ao berço. Eu não podia mais tolerar o som do meu espirro por nem mais um mísero segundo.

Mas e a ausência de olfato e paladar? Como isso poderia impedir meus planos? Basicamente nada que eu fosse meter goela abaixo iria deixar sua inefável impressão em minhas papilas gustativas. Um bom Negroni, o malte escocês envelhecido em barris de carvalho francês usados para amadurecer vinho e conhaque, um licor de cachaça com banana. Delícias que passariam pela garganta sem causar impressão alguma.

Tudo anódino. Mas a vontade de encher a caveira persistia. Lembrei então da vodca, essa prima eslava do álcool Zulu

Um vazio absoluto como o que pude experimentar na tarde daquele mesmo dia quando quis chupar uma bala de cereja daquelas latinhas alemãs. Gosto nenhum. Calorias vazias. Cuspi a guloseima em questão de segundos. Podia ter sido um pedaço de cascalho e daria na mesma. Só havia permanecido a função mecânica, o chupar-bala, mas nenhuma de suas recompensas imediatas apareciam. Não é preciso ser nenhuma mente iluminada para perceber que, óbvio, boa parte do gosto em viver está justamente em sentir o gosto das coisas: a bala, a birita, o prato fumegante de comida. Sem isso, uma parte razoável de nossos apetites vai pro beleleu.

De volta às garrafas. Tempos bicudos, achei que desperdiçar um bom coquetel ou um destilado fino não seria a melhor ideia. Eu não ia sentir gosto ou cheiro. Tudo anódino. Mas a vontade de encher a caveira persistia. Lembrei então da vodca, essa prima eslava do álcool Zulu. Não me entendam mal. Respeito demais a vodca e sua história. Com família vinda da Rússia, conheço a conexão emocional de milhões de pessoas com o destilado do leste europeu. Quanto a mim, porém, costumo usá-la eventualmente quando alguma visita pede “caipiroska” (Tolstói teria um troço escutando isso) ou quando quero turbinar um refrigerante naqueles dias em que paciência e compreensão humanas precisam vir na forma de um líquido.

Dei um primeiro gole: nada. Um segundo gole um pouco maior: só sentia a textura do gelo e a temperatura ondulante do líquido

A vodca, pois bem, a vodca. Quase sem gosto e praticamente inodora par excellence, foi dela que fiz uso para apaziguar o espírito. Não recomendo que façam o mesmo quando estiverem privados dos sentidos do olfato e do paladar. A coisa dá certo demais – e pode conduzir para uma estrada perigosa. Acontece que, por ser uma “água” alcoólica (vodca quer dizer “aguinha” em russo), sem cor ou sabor, ela harmoniza perfeitamente com a perda de olfato e paladar. A coisa funcionou assim. Peguei um copo americano, enchi de gelo e servi a bebida até a borda (eu queria encher mesmo a cara, eu disse). Dei um primeiro gole: nada. Um segundo gole um pouco maior: só sentia a textura do gelo e a temperatura ondulante do líquido. Me empolguei e tomei o resto do que havia no copo como se fosse água da bica.

E assim com outros dois copos cheios até a borda. Aquela experiência de sentir o travo meio amargo da vodca era inexistente. Não havia cara feia ou retrogosto. Parecia estar tomando uma água um pouco mais densa do que o habitual. Era essa a sensação mais presente. Bebi o que calculo uns 600ml em questão de minutos. O resto é uma maçaroca de reminiscências, muxoxos e alucinações etílicas. Dormi cerca de 8 horas sem acordar para espirrar ou secar o nariz permanentemente escorrido.

Perdeu, Naldecon Noite.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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