Isabelle Moreira Lima
A taça cheirar você vai
De como me transformei numa espécie de Yoda do vinho para os meus amigos (e entendi que, no mundo mágico das uvas fermentadas, o que vale é a intenção)
Caí no mundo do vinho por acaso há meia década. Que surpresa o convite! Que delícia essa ideia! E que difícil, meu Deus, entrar nessa do zero, não pagar mico, não boiar nas degustações, fazer frente aos especialistas, ufa! Não tenho certeza da primeira prova profissional a que fui, mas talvez tenha sido a do icônico vinho chileno Almaviva, produzido por um enólogo francês com as uvas clássicas de Bordeaux em pleno vale do Maipo. Era uma vertical (um mesmo vinho, diferentes safras) de 1998 a 2014. Sério, eu não tinha nem ideia do que ver naquelas taças. Meus colegas as erguiam e olhavam para o fundo e para a superfície como se tivessem perdido algo ali (um anel, talvez?). Giravam, com precisão, sem que nenhum líquido vazasse, e as cheiravam. Sorviam o vinho, quase bochechavam – e faziam barulhos esquisitíssimos –, engoliam, faziam cara de quem realiza uma operação matemática complexa na cabeça, anotavam e partiam para a taça seguinte. E assim repetiram por seis safras, enquanto eu os seguia e tentava evitar que o pânico transparecesse no meu rosto.
O pior não era não entender o que 16 anos podiam fazer a um vinho, mas exatamente o que eu ia relatar sobre a experiência. Como disse a mim um velho editor, rei do assédio moral, não sei como consegui entrar e sair daquele evento com a mesma ignorância. Por sorte, o enólogo, um francês de fala muito mansa, quase como a low talker do Seinfeld, sentou-se ao meu lado e a entrevista rendeu – ainda que eu tenha pedido para ele repetir tudo umas 17 vezes.
Mas vinho é litragem, insistem os especialistas, e isso não é pose, pode acreditar. Depois de alguns meses provando (e lendo exaustivamente sobre vinho), uma ficha caiu. Entendi que os aromas, sim, existem – são reais e não mera invenção para tornar a coisa toda mais sexy. Um vinho pode fazer diferentes coisas à sua boca e, depois que você engole, outras mais diferentes ainda podem acontecer. Agora imagine todas essas sensações com a comida certa – a combinação gera um terceiro sabor e outras mil novas sensações.
Vinho é litragem, insistem os especialistas, e isso não é pose, pode acreditar
As viagens me ajudaram mais do que qualquer coisa. Elas foram muito eficazes para tirar a pompa dos salões dos restaurantes caros onde são feitas as degustações, e lembrar de que o vinho nada mais é que um produto agrícola. Foi no Vale dos Vinhedos (RS), que entendi que uma Sauvignon Blanc bem tropical é puro maracujá e que a acidez é o ouro de um espumante. No Uruguai, que uma mesma uva pode ter 700 personalidades. Em Portugal, conheci o poder da madeira para envelhecer um vinho – um Porto Tawny, que repousa em madeira é caramelo puro, enquanto um Ruby, que fica na garrafa, é uma explosão de fruta. Na Borgonha, na França, vi que milímetros de distância produzem um efeito incrivelmente diferente nos vinhos; e em Champagne, que um bom vintage (Champanhe feita com vinhos de uma safra só) pode ser feito por uma família simples e não só por grandes maisons.
Após cinco anos de uma intensa intimidade com a bebida, nossa amizade está firmada para sempre. Agora estou levando essa relação para os meus amigos. Tem funcionado. Hoje experimento ser tratada como uma espécie de Yoda por eles, que me veem (ainda que por cinco minutos durante um encontro) como uma mestra cheia de ensinamentos a compartilhar. Invariavelmente, em algum momento nos almoços e jantares com eles, chegam perguntas como “mas diz aí, o que você acha dos vinhos naturais?” ou “o que é exatamente um vinho laranja?”. Minhas respostas são ouvidas com um nível de atenção perdido no tempo desde o advento dos smartphones.
Também é comum que eu receba, no meio da tarde, fotos de prateleiras de lojas de vinho com a pergunta: “algum desses é bom?”
Mas esse “prestígio” tem um lado ruim também: convido uma turma para jantar (gosto e quero cozinhar, então a comida está resolvida) e os amigos se oferecem para levar algo. Peço bebidas. Eles: “ah, mas não tenho coragem de levar vinho para a sua casa”. Eles se preocupam com não saber escolher, com preço, com tudo. Mas essa eu já consegui virar, ao pedir fotos da prateleira de mercado de onde sai, sim, coisa boa.
Em episódios como esse, o que eu – e a turma – descobri é que não importa o preço, importa a intenção. O papo de intenção é meio badauê e pode estar desgastado, mas neste caso vale: o que você quer na sua bebida exatamente? Do que você gosta? É isso que deve guiar sua escolha, e não preço ou o que está na moda. E é por isso que eu recomendo um pouquinho de leitura e um pouquinho de litragem, como diz a figurinha do What’sApp com o yin-yang. Saber ler um rótulo ou até que palavras-chaves buscar na internet quando se procura uma bebida pode ajudar muito a relação custo-benefício e degustação-felicidade – e é isso que essa coluna pretende fazer nas próximas edições, trazer um pouco de informação para deixar sua relação com a taça ainda melhor.
Só não sei se o pessoal daquela primeira prova de Almaviva concorda.
*Escrevi essa coluna antes da crise do coronavírus, mas acho que ela se aplica à nova realidade da quarentena – seja pela oportunidade de treinar os sentidos, seja pela necessidade de satisfazê-los.
Saca essa rolha
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Para beber num sábado à tarde ouvindo Billie Eilish
Poucas coisas são tão deliciosas quanto os brancos da Alsácia, região no nordeste da França, principalmente os Riesling e os Gerwuztraminer. E escolher uma garrafa com a marca do Domaine Bott-Geyl no rótulo é um tiro certo. Seu Gewurztraminer Les Éléments 2015 é a prova viva disso. Biodinâmico, é perfeito para ser bebido ao som do álbum “When We All Fall Asleep, Where Do We Go?”, de Billie Eilish: ao mesmo tempo que traz notas delicadas (ameixa e pêssego) como é a voz da cantora, tem a mesma originalidade de seu estilo (que digam os aromas de cravo e noz moscada) e o equilíbrio perfeito entre festividade e melancolia (boa acidez e o corpo mais “gordinho”, fruto de seus seis meses em contato com as leveduras).
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Para pagar de sabidão no hangout com os amigos
Um vinho cheio de exuberância de fruta e, ao mesmo tempo, elegância de taninos, volume e acidez brilhante é algo que impressiona qualquer um. O Bom Juiz Reserva 2015, um corte de Cabernet Sauvignon (30%), Alicante Bouschet (30%) e Aragonez (40%) do Alentejo que estagia por mais de um ano em barricas francesas da vinícola Carmim, tem tudo isso, além da enorme capacidades de gerar elogios por quem o prova. Vai bem com carnes de caça e filé.
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Para lembrar do gosto do mar
O aroma é típico da Riesling, um quê de querosene (quem ainda não foi picado pelo mosquito dessa paixão, juro que é delicioso), de emborrachado. Na boca, primeiro vem um cítrico, suco e casca de limão taiti. No fim, uma salinidade deliciosa. Da Nova Zelândia, de Malbogough, vem o vinho que fez a minha cabeça nos primeiros meses do ano. Supercomplexo e inacreditavelmente barato, é vendido com o rótulo Club des Sommeliers Riesling Nova Zelândia por menos de R$ 100. A dificuldade é encontrar em alguma loja do Pão de Açúcar. Se der sorte, não vacile.
Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
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