Leandro Sarmatz
Uma volta em muitas voltas
Voltar à vida social agora parece alternadamente cedo e tarde demais. Fui tomado por uma espécie de ansiedade que trazia doses iguais de euforia e autocondenação
A exposição “Constelação Clarice”, no IMS Paulista, é um triunfo. Não é uma reunião apenas de manuscritos e pinturas (sim, Clarice deixou alguns quadros que me parecem interessantíssimos em seu gesto violento contra a própria pintura). É um diálogo entre a autora de “A paixão segundo G.H” e as artes do seu período (Lygia Clark, Maria Martins), uma ode à produção de grandes mulheres da vida cultural brasileira. Tudo isso aprofunda e expande nosso entendimento da escritora.
A abertura da exposição foi na última sexta, 22, para convidados. Eu estava lá porque sou amigo há mais de duas décadas de uma das curadoras, a escritora Veronica Stigger. Recentemente me tornei também seu editor. A inauguração de “Constelação Clarice” foi meu primeiro evento pós-confinamento. Uma sensação estranha, que misturou – desde a véspera — desejos permissivos e uma autocensura violenta. Voltar à vida social agora parece alternadamente cedo e tarde demais. Fui tomado por uma espécie de ansiedade que trazia doses iguais de euforia e autocondenação.
No início da pandemia, tive alguns episódios de pânico que me fizeram tomar Rivotril pela primeira vez na vida, iniciar um tratamento farmacológico e retornar à terapia
Vale confissão? Havia muito mais em jogo. Acontece que, no início da pandemia, eu tive alguns episódios de pânico que me fizeram tomar Rivotril pela primeira vez na vida, iniciar um tratamento farmacológico (recentemente encerrado) e retornar à terapia depois de duas décadas. Tenho dado tratos à bola. Ainda derrubo algumas estátuas dentro de mim: toda família é um empreendimento colonial. Introvertido, nos últimos anos fui ficando incomodado com uma dissonância entre minha experiência e a imagem que eu projetava para os outros. Uma espécie de Pompeia emocional, com camadas antigas e outras cheirando a tinta fresca. Já tenho quatro décadas nas costas e no entanto, não raras vezes, a timidez me pôs em seu colo. Somente o álcool a enxotava um pouco para longe.
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De volta às caminhadas matinais pela área central (Santa Cecília, República, Sé, Liberdade, Bela Vista), um circuito que elegi também porque é majoritariamente plano. Cansei das ladeiras abissais da Zona Oeste. Ainda estou enferrujado pelos longos meses de engorda e moletom. E também porque estes lugares parecem ilustrar uma história de São Paulo. Construção, mudança, exuberância, autodestruição: eis o ciclo sem fim desta cidade que trai seus próprios sonhos de grandeza enquanto pula do topo do prédio mais alto. Noto que, nessa retomada, a vida por aqui está mais degradada e violenta. Não falo apenas da tragédia social das milhares de pessoas famintas pelas ruas. Tirando iniciativas da sociedade civil, parece que os governos estão fazendo muito menos do que poderiam. E deveriam.
Algo também se perdeu na convivência urbana. Espero que seja temporário. O trânsito, que voltou com tudo, está ainda mais homicida. Sou pedestre e ciclista, portanto sei do que estou falando. Nas últimas duas semanas estive algumas vezes perto de ser atropelado. Carro na contramão, semáforo desrespeitado, velocidade desmedida em ruas eminentemente residenciais. Há um vovô Simpson dentro de todos nós, e o meu se manifesta no trânsito. Berrei e xinguei mais motoristas nos últimos dias do que em todas as minhas décadas de vida.
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A raiva é um dos piores espetáculos da Terra. Um sonho inconfessável de todo tímido é poder meter o dedo na cara de alguém e berrar. Essa é uma fantasia que me parece natural, mas também não passa de um grande equívoco. O tímido não sabe, porque se habituou ao longo da vida a subtrair (acontecimentos, afetos), que o momento de sua libertação nada tem a ver com estrondos e cenas de confrontação explícita. O tímido somente será uma pessoa livre quando aprender a somar. É nessa fronteira enevoada entre vontade e potência recém-reconquistada que ele precisa se mover. Nunca é muito claro, e muita gente se perde no horizonte. Os impulsos violentos costumam estar sempre à mão. A aspereza também pode ser um narcótico.
A raiva é um dos piores espetáculos da Terra. Um sonho inconfessável de todo tímido é poder meter o dedo na cara de alguém e berrar
Porque é fácil abrir uma boca desse tamanho e soltar um punhado de impropérios. Ou bater de frente com o outro. O que é verdadeiramente difícil é demonstrar afeto e construir proximidade. Esse é o aprendizado mais difícil na vida de um introvertido que está encontrando o mundo pela primeira vez sem o exoesqueleto da hesitação. Sua sintonia consigo mesmo diante do mundo só será realizada com a produção de uma nova alegria.
Essa expressão, que peguei emprestada de um samba de Paulinho da Viola, me apareceu em duas ocasiões nos últimos dias. No meu retorno à vida social e ouvindo a canção “Unidos e misturados”, de Teresa Cristina e Martinho da Vila, lançada no mês passado. É um samba que, embora indignado com a situação política, opera na faixa da delicadeza. E a voz de Martinho da Vila pede um todo tratado: tem algo de encantatório em seus graves melífluos, em seu andamento compassado, na expressão do seu sorriso que é possível enxergar a cada verso da música. Há força e insubmissão no canto de Teresa Cristina e Martinho da Vila. Mas, muito mais sábios do que nós, os afetos poderosos dele ceifam qualquer tentativa de exibição da violência.
Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia
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