Coluna Letrux -- Foi por medo de avião — Gama Revista
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Letrux

Foi por medo de avião

Passei um bom tempo sem voar por conta da pandemia. O medo é tão irracional que fiquei: “Será que os pilotos desaprenderam?” Coitada

29 de Setembro de 2021

Escrevo enquanto estou voando. Enfrentando um medo antigo que não passa e arrisco dizer que jamais passará. Pode ser que melhore, mas sinto que não haverá o dia em que voarei em absoluta paz. Sei que é mais arriscado pegar um ônibus ou viajar de carro, estou ciente dos fatos, mas o medo é algo irracional. E também tenho conhecimento que a maioria dos acidentes (não gosto nem de escrever isso estando aqui dentro do avião, mas vamos lá), acontece na decolagem ou no pouso. Mas meu maior medo é o entre. É estar aqui em cima. No pouso, então, estou tão feliz que o tormento vai acabar que, mesmo que seja num aeroporto micro que mete medo, eu sempre penso: “falta pouco para a gente conseguir”. Meu problema é ficar aqui em cima. É somar meus 70 quilos (quatro deles adquiridos na pandemia, quem não?) a essa tonelada que voa. Não faz sentido. Mas muita coisa não faz. Quando criança eu delirava com a agulha da vitrola em cima de um LP e de repente: som, música. Como assim aquilo? Eu deveria estudar mais pra não ser tão impressionada com a vida, mas Macabéa me raptou cedo, Adília Lopes me adestrou tarde. Me maravilho demais. Mas o outro lado também ocorre: me horrorizo demais. Já fui tola, já fui Pollyana para as amigas, agora ando mais ligeira e esperta. Cínica não, pois a lisergia não me permite. E melhor assim. Gente cínica é troço chato, bocejos.

O voo vai bem, obrigada. Faz sol, o que sempre me deixa mais calma. Não me mediquei dessa vez. A pandemia me aproximou tanto da morte que, mesmo com medo, ando mais foda-se. Se eu morrer, morri. A primeira vez que tomei Rivotril na vida foi dentro de um avião. Só tinha tomado remédio tarja preta uma outra vez. Minha prima morreu de meningite, uma história tenebrosa, e colocaram um Lexotan na minha boca no velório, mas acho que não bateu, tamanha insanidade me encontrava. Com 31 anos, prestes a ir pra Portugal pela primeira vez na vida, estava apreensiva com o voo longo. Um amigo me deu um frasco de Rivotril e disse: “Tome cinco gotinhas”. Mas ele não me disse quando exatamente. E quando a turbulência começou em cima do oceano Atlântico (só de pensar no mapa mundi e no tamanho do oceano, eu gelo), eu já estava tão em pânico que cinco gotinhas não serviram pra nada. Meu amigo que nunca tinha tomado quis experimentar e apagou. Fiquei sozinha, com medo, ideias fixas horrorosas e sem nenhuma mão pra apertar. O que eu fiz? Tomei mais cinco gotas. Pra quem nunca tinha tomado, até me comportei bem. Comecei a beber tarde, com 24 anos, e nunca fui de me perder tanto, visto que já me sinto perdida. Mas já fui bastante situacionista com coisas que alucinam, sempre sabendo a hora de dizer “até aqui está bom”, capricórnio não me abandona nunca. Chata muitas vezes, mas também salvo as pessoas de quererem pular de pedras. Há sempre um motivo. Chegando em Lisboa, minha ex banda já me aguardava com vinhos de 2 euros (saudades! Na época, o euro era 3 reais, mais saudades ainda). Não sabia que não podia beber, bebi. E as dez gotas, que só tinham cortado o suor das minhas mãos no avião, começaram a fazer um efeito doido demais junto ao vinho. Não recomendo. Aliás, é proibido, gente. Cuidado.

Quando o babalorixá entra no meu bangalô, ele pergunta se quero saber de amor e eu pergunto: ‘Eu vou morrer num voo dia 26 de novembro de 2014?’

Rolou uma leve turbulênciazinha aqui, lembro das pessoas que eu amo dizendo: “Letícia, é tipo um quebra-mola da estrada, um buraco, mas o carro passa. O avião também passa”. Respiro fundo, faço minha reza que não posso dividir, a mão molha meu computador (e eu nunca suo nas mãos, nunca), mas respiro fundo e continuo.

Divido uma história engraçada: em 2014 eu estava fazendo um filme na Bahia. Havia pouco tempo uma vidente tinha dito que Eduardo Campos, político pernambucano que iria se candidatar à Presidência naquele ano, iria morrer num acidente aéreo. Ele morreu. (Foi assassinado? Bem…). Essa mesma vidente disse que em 26 de novembro de 2014 haveria algum acidente aéreo com a TAM. Estou eu lá na Bahia, brincando de ser atriz, bem feliz, mergulhando nas horas vagas, fazendo amizades, quando de repente a produtora do filme avisa que o elenco vai voltar para o Rio de Janeiro dia 26 de novembro. A companhia? TAM, claro! Tremo. O resto do elenco não é tão supersticioso assim. Uma das atrizes resolve chamar um babalorixá para fazer umas consultas amorosas. Eu pergunto se também posso fazer. Quando o babalorixá entra no meu bangalô, ele pergunta se quero saber de amor e eu pergunto: “Eu vou morrer num voo dia 26 de novembro de 2014?” Ele joga os búzios e diz que não. Peço confirmação. Não, não e não. Depois falamos de amor. Risos. No voo do dia 26, eu sento sozinha, não gosto. Entendo que quem tem medo às vezes não quer pagar mico, prefere ficar sozinha e fazer sons, grunhidos, gestos, sem nenhuma testemunha. Eu não, curto uma criança sentada ao meu lado, pode até chorar. Gente idosa, gente rabugenta, pode ser o que for, mas gosto de ter um ser humaninho pra qualquer coisa a gente se olhar no olho e falar: “Fudeu”. Maluquice, eu sei. Mas nesse dia eu estava sozinha, não gostei muito. Eu nunca tinha passado pela experiência do voo arremeter. Nesse belo dia foi o que aconteceu. O avião ia pousar, pousar, pousar, minha barriga ficava feliz, minhas mãos paravam de pingar, estamos perto do fim, quando de repente, NÃO, o avião arremeteu, decolou de novo, sem nem tocar o chão. Terror. Não sei o que aconteceu comigo. Sei que uma atriz passou por mim depois e me achou verde e me deu meio Frontal. Eu nunca tinha tomado Frontal, foi meu único na verdade, não sei se bateu tamanho pânico eu estava. O babalorixá estava certo, não morri. Estou aqui.

Não deixo o medo me paralisar. O medo como catapulta, gosto de repetir, porque a solução do enigma é a repetição do enigma. Um beijo pra esfinge

Quando meu show “Em Noite de Climão” começou a rodar todo Brasil, pensei que era a hora de enfrentar esse medo. Nunca deixei de entrar num avião — e olha que sou intuitiva, mas não sou paranoica. Sei que vou ter pesadelos, mas não deixo que isso me domine, porque sei que existe uma neurose aí. Uma coisa, uma coisa, outra coisa, outra coisa. Não deixo o medo me paralisar. Quando estou com medo, aí mesmo que investigo. Medo de uma pessoa, medo do palco, medo do amor, medo de voar. O que tem lá nessas coisas que me deixa assim? Aí que eu pulo. O medo como catapulta, falo muito isso e gosto de repetir, porque a solução do enigma é a repetição do enigma. Um beijo pra esfinge. Tive voos melhores, em que consegui até compor, olha que absurdo. N’outros voos chorei e abracei Arthur meu amigo, pensando: “Acabou”. Tempestades, raios, escândalos, voos atrasados (nunca perdidos), foram tantas luas cheias magnânimas e sóis espetaculares nascendo e se pondo. Já vivi muitas horas dentro de um lugar que me causa pânico, é estranho isso. Ao longo dos anos fui aprendendo a driblar, fui criando meus rituais que me ajudam. Não deixo que vire toc, se não fico escrava, mas se me ajudam, por que não? Passei um bom tempo sem voar por conta da pandemia. O medo é tão irracional que fiquei: “Será que os pilotos desaprenderam?” Coitada. Bruce Dickinson, vocalista do Iron Maiden, tinha tanto medo de voar que comprou seu avião e aprendeu a pilotar. Faz sentido. Um dos motivos do medo é a falta de controle (no meu caso não é só isso, mas é também, estou em análise desvendando e entendendo), então se Bruce Dickinson pilota, ele é o responsável, ele confia nele, e isso o faz se sentir melhor. Não vai ser nessa vida que vou ter meu avião, a não ser que eu acerte seis números mágicos, mas acho que mesmo assim não gastaria dinheiro com isso. Mas foi um bom voo, não sei como vai ser o pouso, espero que tranquilo, vou fazer meus rituais e tentar me maravilhar, porque mesmo com medo é bem absurdo ver o mundo de cima. E olha que eu sou alta e já vejo bastante coisa de cima. Mas aqui do alto, o planeta me lembra uma maquete e, nossa, como eu gostava de fazer maquete no colégio, a simulação de uma vida organizada e ajeitada me dava uma paz que eu não sentia na vida tamanho normal. Vim sem remédio, consegui. Vou poder beber hoje.

PS: O pouso não foi tão maravilhoso, visto que a pista de Congonhas é tensa. Foi uma freada brusca. Comentei com a desconhecida ao lado: “Que freada, hein?” Ao que ela respondeu: “Mas pelo menos funcionou!” Tão bom quando o mundo funciona.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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