Letrux -- Se você tivesse que perder um sentido, qual escolheria? — Gama Revista
COLUNA

Letrux

Se você tivesse que perder um sentido, qual escolheria?

Ao perder o olfato, chorei de soluçar. A perda de um dos sentidos é praticamente uma morte

18 de Agosto de 2021

Adoro brincar de situação limite. É uma prática bizarra que tenho com minhas amizades. “O mundo está numa guerra e só você tem o poder de salvar algumas pessoas. Pra isso, você precisa transar com uma dessas pessoas: Bolsonaro, Trump ou Putin”. Não vale morrer. Você tem que responder ao absurdo, essa é a graça estapafúrdia dessa brincadeira. Em algum momento uma situação limite sempre se apresentava: “Você está em coma e descobre que você tem que perder um sentido, qual você escolhe?” 97% das pessoas escolhem olfato, de cara. Eu não, eu nunca. Nas longas conversas que se seguiam após cada situação, eu explicava meu fascínio por cheiros, minha confirmação que o erotismo reside ali no olfato e que a vida sem odores seria uma depressão profunda.

Estou com covid. Peguei numa gravação de trabalho, onde tive que estar sem máscara, e mesmo com todas as pessoas testadas, há o período de incubação. Dias depois da gravação, minha produtora me avisou que quatro entre cinco pessoas da equipe estavam positivas. Na hora pensei: “Lascou, também vou pegar” e, em dois dias, já era. Fui atropelada: dez dias de cama, dor de garganta absurda, tosse horrorosa, um cansaço de maratona, um horror. Nada perto de uma gripezinha, nada. Fui vacinada com a Janssen, e ainda assim esse foi meu estado. Enfim, conto tudo isso porque ao longo de um ano e cinco meses de pandemia, umas cinco vezes tive paranoia de achar que estava com covid e passava a madrugada acordando, colocando o dedo em todos meus orifícios e cheirando. Me reconhecendo, pensava que não estava com covid. Sim, claro, há as pessoas assintomáticas, tenho noção de tudo, mas meu grande pesadelo, se eu não morresse, era perder o olfato. Passei cinco dias bem mal, na cama, na lona, um horror. Mas sentindo todos os cheiros, portanto, miseravelmente feliz. Eu estava com covid, mas esse é o refogado, esse é o sabonete, esse é meu suvaco, esse é o lençol lavado. Tudo era reconhecível, tudo era a minha casa, tudo era meu corpo. No sexto dia, ainda muito cansada, mas não com febre e nem mais tossindo tanto, aconteceu o que eu mais temia: perdi o olfato. Achei que seria dormindo, assim como quando era criança, achava que a gente só crescia na noite do aniversário e tentava, tolamente, me manter acordada na madrugada do dia 5 para o 6 de janeiro, para ver minhas pernas espicharem cada vez mais. Mas lá pelas nove da noite, fui ao banheiro e já não reconheci o cheiro do ambiente. Estranhei e fui lavar as mãos. Nada x nada. Abri um perfume e o desespero se instaurou em mim. Chorei feito uma louca. Eu estava há seis dias na cama, aguentando estar doente com alguma dignidade, bastante revolta com o governo genocida (desde sempre), mas uma dignidade de quem pegou trabalhando e não na esbórnia da negação. Mas ao perder o olfato, meu controle desapareceu. Chorei de soluçar. Eu sei que vai voltar, sinto que vou melhorar, mas enquanto está acontecendo é tudo muito assustador e principalmente solitário. A perda de um dos sentidos é praticamente uma morte.

Minha vida sempre foi guiada pelos cheiros: o cheiro das férias, das agendas, do meu avô que morreu, dos meus sobrinhos quando recém nascidos, das paixões, lembro de todos

Sou nariguda, puxei meu pai. Meu pai inclusive sempre teve um olfato absurdo, fora do normal. Sinto que peguei isso dele. Sou capaz de abrir uma geladeira e saber o que tem estragado. É uma benção mas também uma maldição, pois muitos cheiros me perturbam, muitos. Alguns perfumes de pessoas me dão dor de cabeça ou completa ojeriza, lençol de hotel pode me dar insônia, eu não gosto de queijo amarelo (desde criança) por causa do cheiro. Sim, eu não como pizza. Chocante? Na época do orkut, fiz uma comunidade, “Eu não gosto de queijo”, mais de mil pessoas estavam lá. Risos. Hoje em dia já melhorei e como queijo coalho, pão de queijo, mas o amarelo, aquele cheiro ainda não funciona pra mim. O mais curioso disso tudo é que acho absolutamente normal alguém implicar com meu cheiro, por exemplo. Sinto que cheiro é quase santo. Ou bate ou não bate. Minha vida sempre foi guiada pelos cheiros. Tenho tudo catalogado, o cheiro das férias, o cheiro das agendas, o cheiro do meu avô que morreu e de vez em quando passa e eu penso: “Ai, vô, não aparece que eu vou ter medo”. O cheiro dos meus sobrinhos quando recém nascidos, o cheiro das paixões, lembro de todos os cheiros. Eles me avisam, me protegem, me acariciam e me dão tesão. Tudo é cheiro, e protejo muito meu nariz, pois quero mantê-lo vivo ao máximo. Fico passada com o vício das pessoas em substâncias para desentupir o nariz (e outras drogas). Claro, um vício é um problema. Dou glória aos céus por não sofrer disso. Prezo muito pelo meu olfato. Tudo eu cheiro. Livro, comida, ambiente, pessoas. Tudo. Minha intuição começa com cheiro, sinto até. Imagine portanto meu desespero quando ao sexto dia de covid, jurando que eu ia passar sem essa, eis que o mundo fechou um portal sagrado pra mim.

Iniciei alguns exercícios que recomendam: cheirar café, perfumes, hortelã, coentro, óleos essenciais. Cozinhei e não veio bafo de cheiro, vazio total. Lágrimas escorriam do meu rosto. Eu conseguiria comer sem sentir o cheiro? Consegui porque a fome é implacável, mas foi a comida mais sem graça da minha história caseira de cozinheira. Reclamo de barriga cheia e olfato vazio, sei que o destino de muitas pessoas foi mais cruel e fatal. Meu respeito inexorável. Enquanto espero que o destino do meu corpo seja recuperar rapidamente, penso que há casos de pessoas que demoram seis meses para recuperar, ou também não voltam nunca a sentir cheiros ou ainda ficam com o olfato bem abalado, e uísque pode ter cheiro de batata podre, por exemplo. Vírus misterioso e desgraçado que reage de maneira diferente em cada metabolismo.

Reclamo de barriga cheia e olfato vazio, sei que o destino de muitas pessoas foi mais cruel e fatal. Meu respeito inexorável

Hoje foi meu segundo dia com fôlego. Consegui ficar em pé mais de cinco minutos sem querer deitar. Obrigada, vacina. Estou melhorando, ufa! Minha garganta melhorou, obrigada, Deus, nunca mais febre, nunca mais tosse, obrigada, ciência. Ainda não estou como a cadela farejadora de sempre, mas já consigo vislumbrar o oásis no meio desse deserto que atravesso. Que as pessoas negacionistas tomem um raio no topo da cabeça, e que percebam que atrasar a humanidade é algo muito, muito cruel. Nessas horas me dá muita vontade de engavetar todo mundo. “Gente, quem votou no Bolsonaro, vamos estipular um estado pra vocês? O governo vai pagar a mudança de quem quiser sair e quem quiser chegar. Pais imbecis que não querem que os filhos usem máscara? Só pode estudar na escola tal” e por aí vai. Sei que isso é ultra periclitante. Mas não resisto a pensar. Nem que seja rapidinho. Estou há dez dias na cama, de saco cheio, sem sentir o suvaco da pessoa amada (tragédia grega pra mim), e tendo que aguentar familícia governando o país. Só por essa noite vou me permitir o equívoco de separar o mundo por ideologias. Situação limite: se você pudesse decidir que nunca mais nasceria um bolsominion no mundo, mas você perderia o amor da sua vida, você usaria esse poder? Desculpa, gente, tô sem olfato, tô pegando muito pesado pra sentir mais. Durmam com essa.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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