Para alegrar e esquentar bochechas e pés, Garnacha — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Para alegrar e esquentar bochechas e pés, Garnacha

Ela já foi a uva mais plantada no mundo, teve vinhas arrancadas da terra sem dó e agora volta com vinhos diversos e maravilhosos

11 de Agosto de 2021

Se o filme “Sideways” se passasse nos dias de hoje, qual seria a uva a ser tratada com tanto encantamento, paixão e devoção como foi a Pinot Noir? No filme de 2004, dois amigos saem pela Califórnia para celebrar os últimos dias de solteirice de um deles, enquanto bebem vinho. O amigo que não vai casar é um enófilo que exalta os encantos da Pinot Noir, enquanto despreza a Merlot. Em uma perfeita declaração de amor, ele responde porque gosta tanto da Pinot:

“É uma uva difícil de cultivar, como você sabe. Casca fina, temperamental, amadurece cedo. Não é uma sobrevivente como a Cabernet, que cresce em qualquer lugar e se mantém viva mesmo quando é negligenciada. A Pinot não, ela precisa de constante cuidado e atenção e só cresce em determinadas partes do planeta. E apenas os mais pacientes e cuidadosos produtores conseguem cultivá-la; só alguém que realmente perde tempo para entender o potencial da Pinot pode tirar dela sua maior expressão. E seus sabores são os mais assustadores, brilhantes, emocionantes, sutis e antigos do planeta”.

Então: repito a pergunta, e se fosse hoje? Bem, meu palpite vai para a Garnacha. Se eu fosse Miles, o personagem enófilo vivido por Paul Giamatti, era ela quem eu defenderia, é ela o meu amorzinho atual. Talvez eu segurasse um pouco a onda ao dizer que é “assustadora”, porque ela não é nada sisuda; ela não assusta, mas surpreende. Mais que isso: ela é uma festa. Faz vinhos que deixam qualquer um feliz e que, portanto, emocionam, e que podem vir em diferentes formatos — uns mais sutis, outros nem tanto; uns mais graves, mas nunca exatamente austeros.

Faz vinhos que deixam qualquer um feliz e que, portanto, emocionam. Uns mais sutis, outros nem tanto; uns mais graves, mas nunca austeros

Se você acompanha esta coluna, já deve ter percebido que a cepa é uma habituée da seção de indicações no pé dos textos. Isso porque há muitos produtores, no mundo inteiro, fazendo agora muito vinho bom com Garnacha. Pode ser que você não tenha experimentado algum deles ainda, mas pode ser que já tenha provado um Grenache interessante, uma Garnatxa animadora ou até mesmo um Cannonau delicioso. E — surpresa! — elas são a mesma uva: a primeira é a versão francesa; a segunda, catalã; a terceira, italiana.

O bom de falar de Garnacha agora é que ela faz vinhos alcoólicos perfeitos para esquentar bochechas e pés no que promete ser um inverno sem fim. E, mais, tem para todos os gostos. A começar pelos mais badalados, a Grenache é a espinha dorsal de um must dos anos 1980, os vinhos de Châteauneuf-du-Pape, no sul da França; e do último grito da chiqueza dos anos 2010, os do Priorato, na Catalunha, Espanha. Foi ali, aliás, que ela adquiriu a moral que ostenta hoje. A versão do Priorato, uma região de encostas altíssimas e muito pedregosas, é a de um vinho intenso em cor, sabores e aromas, com alto grau de mineralidade graças aos solos xistosos e às raízes profundas de vinhas velhas plantadas em arbustos.

Mas não são esses vinhos que quero recomendar aqui — quer dizer, até recomendo, mas haja real para comprar um Priorato hoje em dia… Falo dos Garnachas e dos Grenache varietais, feitos só com essa variedade e nada mais, dando um tratamento de protagonista a uma uva que já teve seus dias de menosprezo — foi inclusive arrancada de muitos vinhedos na Espanha, onde era plantada em profusão até o fim do século passado e gerava bebidas bem mais ou menos, e muitas vezes quase licorosas. O esforço valeu a pena e agora tem um mar de maravilhas feitas com essa variedade.

É a espinha dorsal de um must dos anos 1980, os vinhos de Châteauneuf-du-Pape, e do último grito da chiqueza dos anos 2010, os do Priorato

Diferentemente da Pinot de “Sideways”, a Garnacha floresce rápido mas demora para amadurecer, o que é fundamental para a perpetuação de sua existência mesmo com a mudança climática. É vigorosa, tem pouca cor e normalmente apresenta níveis de açúcar muito altos, o que faz com que produza vinhos bastante alcoólicos. A acidez costuma ser moderada. É resistente a doenças da videira, o que explica a existência de muitas vinhas antigas de Garnacha em diferentes partes do mundo. No nariz, pode remeter a aromas de frutas vermelhas ou negras. Na boca, poucos taninos, o que dá essa sensação de maciez.

Ainda assim, seja pelos efeitos da vinificação, seja por características de terroir, hoje é possível achar Garnachas com muita textura, que são como uma bola de pinball entrando na sua boca, atacando um canto aqui, outro ali, e trazendo uma nova nota de sabor a cada interação. Há dois vinhos bem modernetes que fazem isso bem, o Ganadero e o Insensato, ambos espanhóis.

Mas há também a Garnacha balada, festa de fruta e prazer, que entra lisa e redonda e dá para tomar de baldes. É o caso do La Maldita, também espanhol, de Rioja, cujo rótulo é um atrativo a mais porque parece o cartaz de um filme do Almodovar; do Latido de Sarah, que é a festa da cereja e da framboesa e a cada safra pode trazer uma novidade a mais — já encontrei até gengibre entre suas notas, o que apenas comprova que essa uva pode ser sim misteriosa. Ah, e por favor que eu não esqueça do Rochapel, que faz um vinho bem despretencioso, frutadinho sem excesso e delicioso. A boa notícia? Todos eles abaixo de R$ 100.

Há a versão elegante, de vinhos que são chiques por essência, são deliciosos e não se excedem em nada, são sutis, pedem investigação e dão prazer ao contar aos poucos quem são. Há três semanas provei o Borsao Tres Picos Garnacha e estou sob seu efeito até agora, uma mistura de morango, baunilha e couro muito louca e encantadora. Mas seria também injusto não falar da versão francesa aqui e do Côtes du Roussillon Villages Bila-Haut que traz a Grenache ao lado de suas duas grandes parceiras nessa vida, a Syrah e a Mourvèdre, que juntas formam a santíssima trindade do sul do país, mais conhecida como GSM, um vinhaço que merece o tempo e a atenção de quem bebe, com retorno garantido.

Outro francesinho que vale a menção e também é um assemblage (e justo com a Pinot Noir de “Sideways”, veja) é o Joie de Vigne Grenache & Pinot Noir, que além das frutas vermelhas, traz notas de rosas no nariz e ervas frescas na boca. Quer coisa mais chique que isso?

Opa, e quase me esqueço, há também belos rosés, como o Sonrojo e o Rochapel, mais espanhóis aqui pra você, que não me deixam mentir sobre a versatilidade dessa uva e que são bons também no preço. São também festivos, têm personalidade, rosados de inverno.

Até aqui são mais de 6 mil caracteres para convencer de que, se você ainda não a conhece, deve ir atrás de uma Garnacha assim que possível. E, se conhece, espero que tenha ficado convencido de que é hora de sacar mais uma rolha.

Saca essa rolha

PARA MONTAR UM PAINEL
Para conhecer um vinho, nada como compará-lo. Há muitos jeitos de montar um painel. Um deles é pegar vinhos de uma mesma uva (Garnacha, no caso dessa coluna) e prová-los lado a lado. Outra, é pegar os vinhos de um único produtor. Uma terceira ideia é juntar as duas anteriores: uma mesma uva, um mesmo produtor. Há uma linha inteira da vinícola La Calandria, que possibilita a brincadeira e mostra bem o potencial de elegância da uva.

PARA CONHECER O PRIORATO
Se for o mês do seu aniversário, vale dar-se um presente e comprar um vinho de Alvaro Palácios, o homem que “tira vinho de pedra” e que já foi eleito homem do ano pela revista Decanter. Aqui tem uma entrevista com ele. Um jeito de pagar um pouco menos por um vinho da região é provar um rótulo de produtores grandes, como esse aqui do Miguel Torres, o Salmos, é um vinhaço. Vale decantar.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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