Leandro Sarmatz -Estrelas, engravatados, tiranos — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

Estrelas, engravatados, tiranos

O tempo das supereditoras de moda, aquelas figuras imperiais, despóticas, caricaturais e personalistas como Anne Wintour parece estar chegando ao fim

05 de Julho de 2021

Foi o New York Times que cantou a bola: o tempo das supereditoras de moda, aquelas figuras imperiais, despóticas, caricaturais e personalistas como Anne Wintour e Carine Roitfeld, parece estar chegando ao fim. No lugar delas, uma geração educada e acostumada à saraivada de críticas e cancelamentos do mundo digital, que arregaça as mangas e parece muito mais atenta ao que de fato está acontecendo no chamado “mundo real”. Algo como a ascensão dos ex-estagiários, diria eu.

Pode ser. Tomara que em parte seja verdade. Personagens como Wintour são apenas isso, personagens. Ruinzinhos que só, mas que até inspiram filmes bons, como O diabo veste Prada. O problema também está na claque. Na minha carreira jornalística pude observar algumas figuras à frente de publicações especializadas que devem ter lido um hipotético “Anne Wintour for Dummies”. Nenhuma visão. Somente achaques e repelões grosseiros. Era parte da “imagem”. O problema é que acreditavam demais nela. Esquecem que um dia todo império declina e desaparece. Das ruínas costuma sair coisa bem melhor.

Na minha carreira jornalística pude observar algumas figuras à frente de publicações especializadas que devem ter lido um hipotético “Anne Wintour for Dummies”

O fato é que não há nada mais antiquado e cafona do que essas prima-donas a entoar suas operetas nos escritórios. Além do ridículo em si, elas intoxicam o ambiente com sentimentos que vão do horror ao pânico, passando por todas as gradações de ansiedade, desprezo e sensação de quase-morte. (Nenhum grau estelar é um brevê para o mau-caratismo e a grosseria.)

É curioso que o jornal americano tenha se detido no mundo da moda. Não é, claro, exclusividade da turma que sai de Birkin por aí. Muito antes pelo contrário. Os exemplos levantados na reportagem fisgam mulheres que, em ação desde a década de 1980, tiveram que se impor num ambiente em que os homens – os chefões dos impérios jornalísticos – davam a última palavra. Os engravatados, muitas vezes misóginos, que as testavam a cada segundo, sempre esperando uma lágrima ou soluço. Não era bonito, acredite.

Claro que boa parte da culpa é masculina. Nenhuma ironia aqui. Alçadas à chefia, muitas dessas mulheres tiveram que se sintonizar com o padrão dos chefetes de ocasião, para quem a dúvida é fraqueza, a hesitação é covardia e a sensibilidade é, bem, “coisa de mulherzinha”. Formadas nessa ideologia brutal e massacrante, acabaram afiando as garras. E pobre de quem lhes cruzava o caminho.
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A gravata, sim senhor. Não vou torrar a paciência de ninguém falando das origens e difusão dela, longe de mim. A convenção toda etc. Nem fazer qualquer tipo de leitura psicanalítica para dizer que acho sim a gravata a definitiva, simbólica e figurada representação do “pau na mesa”. Aquele pedaço de tecido pendurado no pescoço, balançando entre a garganta e o pinto. A fala e o falo. Pois bem, dou por encerrada a sessão por aqui.

Em ação desde a década de 1980, essas mulheres tiveram que se impor num ambiente em que os homens, muitas vezes misóginos, davam a última palavra

Já foi o tempo dela, não? Melhor dizendo: já está na hora de nós, homens, arrancarmos esse símbolo vulgar do medo da broxada – sexual e profissional – de nosso dia-a-dia. Sem ela, acredito (mesmo passando por ingênuo), boa parte da violência instaurada no mundo do trabalho pode aos poucos definhar. Isso e um bom acesso a tribunais, evidentemente. Tirania se combate com processo e escracho.

Mas voltemos à gravata, esse adereço que faz dos homens um centauro — metade cavalo e metade chefe. Adoraria acreditar que, dentre as muitas transformações operadas pela pandemia, a maneira como nos vestimos também será modificada. Depois de tanto trabalharmos em casa de moletom da Disney e pantufas peludinhas, quem é que vai desejar colocar um garrote no pescoço? Quero crer que não muitos de nós.

Mas se a transformação parece operar no nível pessoal, a verdadeira revolução só se dá pela força coletiva. É imperioso que as firmas passem a abolir essa aberração. Não me entenda mal. Não estou postulando que todo mundo saia de camisa havaiana por aí (o que seria incrível, para falar a verdade), mas sim que as esferas que representam o poder – e isso vale para o mundo do trabalho e para o universo das convenções sociais – possam relaxar um pouco. Isso vai trazer igualdade para todos? Claro que não. Mas parte da auto-imagem dos “líderes” vai certamente ganhar outros contornos, talvez até mais amenos.

Na TV a coisa parece mudar, ainda que aos poucos. Não sei se veremos o Bonner dando “boa noite” sem a gravata da seriedade pomposa. Muitos ainda acreditam que basta usá-la para ganhar credibilidade. Na tela e nos escritórios. Mas esses dias, na Globo News, o apresentador Marcelo Cosme não só estava sem gravata como também ostentava uma camisa com gola rolê (turtle neck, em bom português) sob o paletó. A transformação passa por esses pequenos gestos de rebeldia dentro das corporações.

E é só o começo.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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