O T da questão
Ao mesmo tempo em que vem conquistando espaço na dramaturgia, música e política, a população trans ainda é a que mais sofre com a violência contra LGBTQIA+. Leia relatos de pessoas que lutam contra essas estatísticas
Eles e elas estão nas novelas, nas séries, na música pop, na publicidade, na política. Ao passo em que vêm conquistando espaços de destaque, a população trans (representada pelo “T” na sigla LGBTQIA+) é, de longe, a que mais sofre com a violência, a discriminação e a falta de direitos.
No Mês do Orgulho LGBTQIA+, Gama conversou com seis pessoas trans de diferentes áreas de atuação. Em comum, quase todas citaram como principal luta da comunidade o direito à vida, o fim do que chamam de “genocídio”, que torna a expectativa de vida média de uma pessoa trans no país em torno dos 35 anos.
No Brasil que ainda detém o vergonhoso título do que mais mata LGBTQIA+ no mundo, elas são alvo da maior parte desses crimes, um número que aumentou 43% no ano passado segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). A seguir, você lê depoimentos de resistência de quem vem tentando reverter essa estatística.
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‘Ainda somos as que mais morremos, é um cenário muito devastador’
Erika Hilton, vereadora por São Paulo, a mais votada no Brasil em 2020
Divulgação / Rafael Canoba “É muito difícil responder sobre uma principal questão de um grupo onde todas as questões são principais porque diz sobre a existência, a vida, a humanidade, os direitos desta população. A população transvestigênere é uma população ainda muito alijada de muitos direitos. Se eu pudesse elencar algumas delas, eu diria que é o fim do genocídio das nossas mulheres trans e travestis, o enfrentamento do número de mulheres trans e travestis na prostituição e uma inserção no mercado formal de trabalho para que, a partir disso, tenhamos dignidade de sustento, moradia, lazer, qualidade de vida. Não dá pra dizer uma única pauta principal quando nós ainda vivemos às margens da sociedade, quando ainda somos as que mais morremos, quando 90% de nossas mulheres ainda estão na prostituição, quando a forma que nos matam são as piores. É um cenário muito devastador pra nós, por isso temos muitas prioridades enquanto movimento organizado no Brasil.”
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‘Vivemos no país que mais mata pessoas trans e que menos tem políticas para evitar’
Rodrigo Franco, articulador político-cultural e empreendedor, presidente da Casa Chama, de apoio à população trans
Divulgação / Rafa Kennedy “Sem dúvida, pra mim, a principal luta das pessoas trans no Brasil é o prolongamento de suas vidas, a sobrevivência. Isso se dá por uma série de fatores. O Estado não ser laico e ser ausente é um dos maiores responsáveis. Os valores religiosos e a ausência de direitos iguais para as pessoas permite que pais de famílias abandonem suas crianças e adolescentes trans, o que abre espaço para o abuso, o abandono, a LGBTfobia, a transfobia. As mulheres trans, principalmente, acabam tendo que se prostituir, não existe trabalho, e se colocam em situação de precarização, de risco de serem assassinadas. No caso dos homens trans, de serem suicidados. E nós falamos suicidados porque não é que tiveram um problema existencial e cometeram suicídio, eles são suicidados por essas questões estruturais que os levam a cometer esse ato. Então o maior desafio das pessoas trans é não morrer, infelizmente. Vivemos no país que mais mata pessoas trans há uns 15 anos e que menos tem políticas públicas para evitar isso.”
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‘Temos marcas raciais, regionais, geracionais e políticas muito variadas’
Dodi Leal, professora da Universidade Federal do Sul da Bahia e autora de “De trans pra frente” (Patuá, 2017)
Arquivo Pessoal “Não há uma universalidade entre pessoas trans, somos muito diferentes, temos marcas raciais, regionais, geracionais e políticas muito variadas. No meu entendimento um dos pontos principais que temos em comum é justamente poder reivindicar nossa diferença, o direito de não parecermos uma com a outra e, para isso, deixarmos se for preciso de parecer com a gente mesma. Desigualar-se de si para encontrar-se para além de cis. Neste momento, arrisco dizer que uma das reivindicações mais importantes para pessoas trans seja de que os espaços que ocupamos não tenham como traço único as transgeneridades. Vou dar um exemplo, nas próximas semanas iniciarei uma campanha para subir a hashtag #DodiNoRodaViva. Penso que, como eu, há muitas pessoas trans preparadas para ocuparem a bancada do programa Roda Viva da TV Cultura, mesmo quando a pessoa entrevistada no centro da roda não for trans. Sou pesquisadora de artes, sou trabalhadora da educação e da cultura, tenho plenas condições de provocar, interrogar e dialogar com entrevistados(as) das áreas de arte e educação, cisgêneras(os) ou não.”
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‘Precisamos nos ver nos espaços e saber que nós também podemos chegar lá’
Renata Carvalho, atriz, diretora, dramaturga e transpóloga (antropóloga trans)
Arquivo Pessoal “A principal luta das pessoas trans e travestis é a busca da naturalização de nossas vivências, identidades e corporeidades, para que enfim possamos ter nossa humanidade restituída. Há no imagético do senso comum uma construção social, midiática, carnavalesca, criminal, patológica, hiper sexualizante e moral do que é ser uma travesti ou pessoa trans, e é essa imagem que precisamos desconstruir. Ser travesti é tão natural quanto ser cisgênero. Por isso a representatividade trans é tão importante, precisamos nos ver nos espaços e saber que nós também podemos chegar lá.”
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‘Todos os dias vemos alguém do nosso círculo afetivo sendo assassinado’
Vincent Pereira Goulart, psicólogo, pesquisador e ativista trans
Arquivo Pessoal “O maior desafio que as populações de pessoas trans enfrentam hoje no Brasil não é algo tão novo assim, mas vem ganhando força a cada ano que passa: o genocídio da nossa população, especialmente ao que se refere a pessoas trans negras de periferia. Essas violências fazem parte da constituição da nossa sociedade, ou seja: é assim que as relações foram estabelecidas, basicamente, com as pessoas trans, partindo muito de uma inferiorização e patologização desses grupos, como se tivéssemos que passar por um tipo de ‘correção’ para estar dentro do que uma sociedade considera como ‘normal’ e ‘aceitável’. Porém, esse tipo de pensamento também é embasado na ideia de que pessoas trans são uma afronta, uma ameaça à família, aos padrões sociais, ao poderio e controle do cristianismo sobre a sociedade e, acima de tudo, ao Estado. Não somos considerados cidadãos. Essa cidadania tem sido conquistada, através de muita luta e esforço, pelos movimentos sociais de pessoas trans e travestis no Brasil. É um passo para frente e dois para trás, além de muitos problemas a serem sanados, tendo em vista que todos os dias vemos alguém do nosso círculo afetivo sendo assassinado. Certamente, o nosso maior desafio hoje é sermos vistas/os como gente.”
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‘Ainda continuamos com uma expectativa de vida de apenas 35 anos, que é medieval’
Carolina Iara, covereadora pela bancada feminista do PSOL por São Paulo
Instagram / @acarolinaiara “A principal luta hoje das pessoas trans no Brasil é uma luta pela vida. Pelo direito de existir, de envelhecer, de não ser assinada/do/de com índice de crueldade alto, como são os crimes transfóbicos, mas também de não morrer pela falta de direitos básicos. A população trans tem uma empregabilidade muito baixa fora da prostituição, o que vulnerabiliza ainda mais travestis e mulheres transexuais, faz com que sejam mais assassinadas. Ao mesmo tempo, o direito à saúde integral tem sido uma grande disputa porque os índices de adoecimento por doenças tratáveis na população trans, como pneumonia, tuberculose, Aids, tem sido bastante alto. Temos esse pacote de direitos que são negados e precisamos alcançar. O Estado hoje tem agido de forma LGBTfóbica. Tem se multiplicado o número de projetos de lei que querem proibir pessoas trans no esporte ou propaganda de LGBTQIA+ em veículos de comunicação, que são transfóbicas. Eles não são aprovadas por enquanto, mas existe essa ofensiva, inclusive do governo federal. Há uma situação bastante delicada para as pessoas trans no Brasil que é de evitar retrocessos, manter direitos como a retificação de nome e de gênero nos documentos, mas ampliar tudo isso que já se conquistou para o direito à vida, porque ainda continuamos com uma expectativa de vida de apenas 35 anos, que é medieval.”