CV: Clara Serva
Head de empresas e direitos humanos na TozziniFreire, advogada aprendeu que unir a paixão por causas sociais à atuação profissional seria o melhor dos mundos
Desde a adolescência, Clara Serva achava que precisaria dividir a vida em três partes: a profissional, a pessoal e a social. Primeiro, veio o interesse pelas causas humanas. “O que mais me formou foram os cafés que tomei com as pessoas”, diz. Aos 15 anos, inconformada com as pessoas em situação de rua, foi trabalhar como voluntária na associação Minha Rua Minha Casa, centro de convivência para pessoas nessas condições.
Mais tarde, já na faculdade de Direito, fez uma iniciação científica focada no assunto. Seguindo essa linha, seu trabalho de conclusão de curso tratou da função social da advocacia. “Me engajei no tema na faculdade e estudei as diferentes perspectivas, inclusive dentro da Igreja Católica”, conta a advogada.
De estagiária no escritório TozziniFreire Advogados, em São Paulo, foi efetivada como assistente jurídica em 2013. Já advogada, especialista nas áreas de contencioso cível, mediação e arbitragem, decidiu pedir demissão em 2015. O motivo: interessada no tema da dependência química, queria ser voluntária por três meses na Fazenda da Esperança, instituição de Palmas (TO) que recupera mulheres dependentes de álcool e drogas.
Em vez da demissão, porém, sua chefe ofereceu uma opção mais interessante. “Se as pessoas pediam uma licença para ir estudar em Nova York, por que não para ir trabalhar com o que você gosta?”, lembra Clara. Foi ali que ela entendeu pela primeira vez que poderia juntar sua paixão por causas sociais ao trabalho como advogada, e finalmente abraçar quem era em sua totalidade.
“Eu tinha três personagens: a Clarinha dos amigos e da família, a Clara das causas sociais e a profissional. É supercansativo ser três pessoas diferentes em situações diferentes. Hoje, a Clara tem até mais potencial transformador, de ser uma pessoa que agrega mais para as instituições e para minha própria vida do que antes, com a separação dos espaços.”
Em 2016, a advogada deixou a empresa para estudar para a carreira pública. Retornou, no entanto, no ano seguinte, logo passando a acumular a função de coordenadora da advocacia pro bono da TozziniFreire. Em 2020, participou da criação e chegou à chefia da novíssima área de empresas e direitos humanos do escritório — segundo Clara, o primeiro a ter uma exclusivamente dedicada ao tema no Brasil.
A área oferece assessoria consultiva, sobre os impactos de empresas em diretos humanos, e contenciosa, buscando resolver conflitos dentro desse tema. “Com os mecanismos de resolução de conflitos, conseguimos identificar o que de fato é necessário para reparar aquele indivíduo pela violação que sofreu, o que ajuda a transformar a causa.”
À Gama, a advogada falou também sobre o que aprendeu trabalhando com advocacia e direitos humanos, os danos de tentar disfarçar quem você é na atuação profissional e como lidar com o machismo no mercado de trabalho.
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G |Quais os seus maiores aprendizados nesses anos como advogada?
Clara Serva |O primeiro é ouvir empaticamente as pessoas, uma coisa que a gente chama de escuta ativa. O que entendi ao longo do tempo é que ninguém é só bom ou ruim. A mulher racista pode ser superengajada na militância contra o machismo. O homem machista pode ser sensível à temática das pessoas com deficiência. Os conflitos e as injustiças são formados por pessoas. Só entendendo suas potencialidades e qualidades, e das instituições que elas ocupam, conseguimos enxergar formas de transformar e evitar injustiças. Não pode se calar, mas sim, com empatia, tentar construir e transformar. Sem achar que todo mundo está de má-fé ou que as coisas precisam continuar como estão. Por exemplo, espaços corporativos não devem se manter iguais só porque a maioria das empresas ainda é branca, cis, hétero etc. É preciso ter a percepção do porquê chegamos aonde estamos, e a partir disso buscar transformar esses espaços.
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G |Qual a sua missão na sua profissão?
CS |É a mesma missão da minha vida pessoal e acadêmica: buscar promover direitos humanos em todos os lugares. De novo, com empatia, mas existem, sim, situações em que precisamos ser mais combativos. Como coordenadora pro bono, trabalho com organizações da sociedade civil e, como head de empresas e direitos humanos, atuo com grandes empresas. Ao mesmo tempo, sou integrante do grupo de trabalho do escritório. Então basicamente tento levar para todos esses espaços a consciência de privilégios, os impactos negativos disso para os direitos humanos, a percepção de tentar lutar contra isso, e ao mesmo tempo entender que todas as atividades também geram um impacto positivo. Então devemos buscar potencializar esse impacto.
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G |Quais lições você tirou do período em que está à frente do departamento de empresas e direitos humanos da TozziniFreire Advogados?
CS |A pacificação de conflitos tem sido bem marcante, porque une a minha trajetória no contencioso à minha visão de mundo de empresas e direitos humanos. Em direitos humanos, falamos em reparação integral, que não é só indenizar. No Brasil, temos uma cultura de transformar em dinheiro o dano que a pessoa sofreu. As coisas não se resolvem assim. A reparação integral não é só pensar em quanto custou aquela violação de direitos humanos. Com os mecanismos de resolução de conflitos, conseguimos identificar o que de fato é necessário para reparar aquele indivíduo pela violação que sofreu, o que ajuda a transformar a causa. Um pedido de desculpas pode ser muito mais potente do que pagar R$ 5 mil, valor que os tribunais costumam arbitrar para indenizações individuais. Faz toda a diferença saber que a empresa mudou a política interna a partir do seu caso, que você contribuiu para que ela busque formas para que aquilo não se repita. Tenho visto como isso é potente a partir de casos de transfobia, em que tudo que a vítima do episódio precisa é ser acolhida e ajudar a evitar que outras pessoas trans vivam casos parecidos. Vale o mesmo para racismo, capacitismo, machismo, assédio…
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G |Quais têm sido os maiores desafios para o seu trabalho?
CS |Empresas e direitos humanos é um tema muito novo no Brasil. Somos o primeiro escritório de advocacia corporativa no país a ter uma área dessas. Boa parte do meu trabalho é conscientizar sobre o que estou falando. Com frequência, quando digo que sou de uma empresa de direitos humanos, a pessoa me pergunta se trabalho com diversidade. Sim, é um pedacinho, mas não só isso… Esse processo de conscientização é o principal desafio, assim como passar para as pessoas a noção de que esse é um tema prioritário. Claro que melhoraria se cada área tivesse um consultor de direitos humanos, mas o mais importante é que as instituições tenham uma visão sobre o tema que permeie toda a atividade empresarial. Isso é complexo, porque nas empresas seu contato vai ser sempre com um só setor ou uma pessoa. Ainda que essa pessoa seja o presidente, ele vai ter que acionar múltiplos setores. A percepção de que direitos humanos devem ser um tema transversal é um grande desafio.
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G |A paixão e a motivação andam juntas?
CS |Se puder, sempre. Mas sei que isso é um privilégio. Na verdade, a maioria dos brasileiros luta por subsistência, para colocar a comida na mesa. Como vou dizer que uma pessoa precisa trabalhar por paixão? Óbvio que ela está trabalhando pelo seu desejo de viver. Então, sempre que possível, o ideal é que paixão e motivação andem juntas. Uma das melhores coisas da vivência é reconhecer a motivação nos pequenos atos do dia a dia. Um dos exemplos que mais me motivaram foi quando fazíamos mutirões em Heliópolis uma vez por mês, antes da pandemia. Também outros projetos grandes, de liberdade de expressão, cirurgia de transgenitalização (mudança de genitália)… Um dos episódios que mais me marcaram aconteceu num dia em que estava tomando café no escritório. A moça que ficava na copa me perguntou se eu trabalhava pro bono. Ela me disse: “Só entendi que minha filha é um filho, um menino trans, depois que ouvi você falar disso num dos projetos pro bono que conduziu.” Essas coisas, as pequenas motivação, são o que nutre as grandes paixões.
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G |Como você enfrenta o machismo no mercado de trabalho?
CS |Sou uma mulher branca que veio da classe média alta e estudou em colégio de elite, então sofri muito menos que a maioria das brasileiras. Mas estou num espaço corporativo que é predominantemente masculino, então já vivi desde episódios de machismo sutis até os mais escancarados, como juiz me chamando de “menina”, enquanto tratava o outro advogado como “doutor”. A principal forma de lidar, para mim, é fazer a correção com sutileza. Uma tentativa de pacificar, por vezes quase falsamente subserviente, mas com a intenção sempre de transformar, nunca me calar. Brincam que, se a Clara veio com muito jeitinho, ela vai acabar conseguindo o que está pedindo. Claro que não tento manipular as pessoas, mas é uma tentativa de entender a situação do outro sem deixar de me expressar. Com isso, conseguimos provocar as pessoas a refletir sobre o que estão dizendo e por que. Quando se referem a mulheres, geralmente não é como chefes, mas numa posição de escuta, nunca de ser ouvidas. Ao mesmo tempo, precisamos perceber que muitas pessoas não fazem isso conscientemente. É um exercício cotidiano que às vezes precisa ser feito de forma mais combativa, e às vezes mais sutil.
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G |Na sua trajetória você cometeu alguma falha que não cometeria hoje?
CS |Quanto tempo eu tenho? São muitas… A primeira falha foi disfarçar quem eu era. Lembro de um momento em que tinha acabado de ser efetivada no escritório. Minhas chefes me chamaram para dizer que eu podia ter vida fora do trabalho. Elas só conheciam a Clara muito séria, estritamente profissional. Mal sabiam quem eu era fora do trabalho. Ao perceber que fazia isso comigo mesma, comecei a colocar na minha pauta cotidiana uma luta para que as pessoas possam ser no trabalho quem são na vida completa. Se para mim isso já foi uma coisa muito marcante, imagina para uma pessoa homossexual, que se mantém dentro do armário porque não se sente confortável no mundo corporativo. Ou uma pessoa trans, que é ainda mais marcante. Outro ponto é que antes achava que direitos humanos eram um tema restrito ao poder público. Se eu quisesse lutar por isso, precisaria entrar nessa área. Isso é importantíssimo, mas hoje acho que a luta social tem que estar presente em todas as instituições. Pessoas engajadas devem ocupar os espaços corporativos para que eles se tornem cada vez mais sensíveis a essas causas e a olhares humanitários. Hoje vejo que isso também era uma falha porque, se as pessoas engajadas só estiverem no poder público ou no terceiro setor, naturalmente as corporações vão perpetuar o mesmo olhar institucional que existia antes.
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G |Que conselho você daria para os profissionais que estão começando agora e que pretendem seguir carreira na sua área?
CS |Meu primeiro conselho é que direitos humanos são uma lupa. Então você pode olhar para qualquer atividade e setor, dentro ou fora da advocacia, com a lupa dos direitos humanos e, a partir disso, transformar a forma de executar aquela atividade. Acho o máximo que a pessoa faça disso uma missão de vida. Se puder, também é importante pensar no longo prazo. Digo se puder porque com frequência temos que pensar no dia de hoje. Nem todo mundo pode fazer esse planejamento de carreira. Fora do Brasil, já existe ranking mundial dos escritórios que trabalham com a área de direitos humanos. Aqui é uma novidade. As equipes que falam sobre isso são os times de recrutamento e seleção, olhando exclusivamente para diversidade. São raros os espaços que têm essa atenção. Se a pessoa tiver um olhar de longo prazo, o mercado está amadurecendo para a importância dos direitos humanos em todas as empresas, escritórios e no próprio Direito. Essa é a mensagem, buscar construir esse olhar.
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G |Você vive para trabalhar?
CS |Eu vivo pelos direitos humanos. O desafio é esse. O filme que vejo no sábado é um que discute causas sociais. Então estou trabalhando ou sendo a Clara? Claro que faço o que amo. Leio livros sobre causas sociais, desigualdade, desde Chimamanda Ngozi Adichie até Djamila Ribeiro. Gosto de viver disso. É difícil dizer que vivo para trabalhar. Claro que também gosto de assistir filmes trash, mas boa parte do que faço é por amor a essa causa. Às vezes parece que nem trabalho, porque estou lendo e escrevendo sobre um tema que amo, tendo reuniões com pessoas incríveis sobre projetos sociais maravilhosos e escutando pessoas que transformam o mundo, que trabalham com perspectivas que vão desde o racismo até a luta contra mudanças climáticas. São temas tão diversos e pessoas tão incríveis que às vezes nem parece reunião, e sim um bate-papo gostoso.