Quem tem fome tem pressa
Em meio à pandemia e com manutenção do auxílio emergencial incerta, a campanha Tem Gente Com Fome quer criar uma rede de solidariedade para mais de 200 mil famílias que não têm o que comer
Após 12 meses de pandemia, cerca de 10 milhões de brasileiros passam fome. O Brasil voltou a figurar o Mapa dois anos antes, em 2018, devido a vários fatores — a desigualdade da sociedade brasileira, o crescimento do desemprego, os cortes em programas sociais e o alto índice de desemprego –, mas no último ano, a situação foi agravada. O auxílio emergencial chegou a reduzir a pobreza no país, mas a diminuição no valor do benefício e a incerteza sobre sua manutenção tendem a desestabilizar os mais pobres.
Na terça-feira, dia 16, a campanha “Tem Gente Com Fome” foi lançada pela Coalizão Negra Por Direitos, em parceria com a Anistia Internacional, Oxfam Brasil, Redes da Maré, Ação Brasileira de Combate às Desigualdades, 342 Artes, Nossas – Rede de Ativismo, Instituto Ethos, Orgânico Solidário e Grupo Prerrô.
A ação, que tem como objetivo doar cestas básicas e itens de higiene para famílias vulneráveis, começou a ser planejada com o fim do auxílio emergencial de R$ 600. Sem a perspectiva de um novo auxílio governamental e com a piora da pandemia, o plano de ação das organizações ficou claro — eles deveriam fazer o que o governo não faria.
Ao todo, serão 222.895 famílias beneficiadas com produtos no valor de R$ 200 durante três meses. O mapeamento das famílias buscou atender os locais de maior vulnerabilidade social por todo o país (há mais detalhes sobre o mapeamento neste documento). De acordo com a campanha, serão priorizadas também as situações de pico de crise de coronavírus; mulheres e mães negras; comunidades tradicionais quilombolas, pescadoras e ribeirinhas e trabalhadoras rurais, favelados e periféricos”. No site, é possível doar valores fixos — R$ 10, R$ 50, R$ 100, R$ 500 e R$ 1 mil. A doação de outros valores — maiores ou menores — pode ser feita através da conta bancária da campanha, pelo PayPal ou pelo PIX.
Enquanto o debate sobre a renovação do auxílio emergencial continua, Gama conversou com Mariana Andrade, integrante da Coalizão Negra Por Direitos e da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno, sobre a urgência da campanha, a dificuldade das famílias vulneráveis e o abismo em que o Brasil se meteu.
Fome de quê?
Desde o começo da pandemia, a coalizão vem acompanhando o processo de articulação política em prol do auxílio emergencial. Com o fim do benefício, a organização passou a agir e formular propostas que pudessem auxiliar a população, mas encontrou resistência no Congresso e no Senado. “Infelizmente, vimos que a segunda leva do auxílio seria de apenas R$ 200. Esse valor não alimenta uma família, só na compra do gás já vai metade. Entendemos que era necessário fazer uma ação política e criar uma rede de solidariedade”, afirma Mariana.
O nome da ação vem de um poema de Solano Trindade que repete ‘se tem gente com fome/dá de comer’ várias vezes imitando o ritmo de uma locomotiva
O nome da ação, “Tem gente com fome”, vem de um poema de Solano Trindade. “Se tem gente com fome/ dá de comer/ se tem gente com fome/ dá de comer/ se tem gente com fome/ dá de comer” repete o poeta pernambucano, no ritmo de uma locomotiva. Apesar de ter sido escrito há décadas, o poema é assustadoramente atual com trechos como “Mas o freio do ar/ todo autoritário/ manda o trem calar”.
Além da família do próprio Solano Trindade, outras personalidades da mídia — como artistas e intelectuais — também apoiam a campanha Ailton Krenak, Camila Pitanga, Emicida, Sueli Carneiro, Ailton Graça, Zezé Motta, Djamila Ribeiro e Flávia Oliveira são alguns dos nomes. A presença de pessoas negras na promoção da campanha não é por acaso. “Sabemos que a população negra, muitas vezes, é a que mais sofre com os problemas que assolam a sociedade. Nós estamos em maior posição de vulnerabilidade.” O recorte racial, assim como o recorte de classe, são um norte na busca para amenizar a fome no território brasileiro.
Com o agravamento da pandemia, a importância de movimentos que ajudassem os mais necessitados se tornou ainda maior. Mariana sabia que os últimos anos não seriam fáceis, mas o coronavírus foi capaz de piorara situação. “Não temos vacinas e não temos lockdown. E como faríamos lockdown se não damos condições das pessoas sobreviverem a ele com o auxílio?” Para ela, é fundamental dar condições para que as pessoas possam reagir. “Os próximos passos vão ser de muita luta política e saco vazio não para de pé. Não acreditamos em mudança a curto prazo, mas faremos o que sempre fizemos, desde que o Brasil é Brasil — continuar a luta.”
Tem gente passando fome, a ação é urgente
“O assistencialismo não é o nosso modo ideal de ação, mas o propósito da ação vai além disso. Não é uma distribuição aleatória de cestas básicas, é um trabalho político. Um apoio para regiões vulneráveis através do fornecimento dos alimentos e de produtos de higiene.” Ela tem dificuldade em encontrar uma palavra para descrever a situação em que o país se encontra, mas “terrível” e “absurdo” servem no momento. “O cenário é desesperador, temos um governo que não liga para corpos mortos, que não liga para pessoas passando fome.”
A Coalizão entende que o direito à alimentação não é papel da organização ou de um movimento e sim responsabilidade do governo. “Mas nós temos um governo que não liga para isso. É frustrante, absurdo. Não é o cenário que nós esperamos, mas é urgente criar uma rede de solidariedade. Se não for nós por nós, não será o governo que mudará esse cenário.” A meta da campanha é alta, na casa dos milhões — R$133.737.000,00 para ser mais específico. Mas Mariana entende que não há outra opção que não bater essa meta. “Tem gente passando fome, a ação é urgente.”
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