Leia trecho de livro que fala sobre ghosting - Copo Vazio — Gama Revista

Trecho de livro

Copo Vazio

Em seu primeiro romance, a psiquiatra Natalia Timerman trata da prática do ghosting por meio de uma protagonista perturbada pelo abandono

Leonardo Neiva 19 de Fevereiro de 2021

POR QUE LER?

Após diversos encontros, a química entre vocês avançando, algumas transas, conversas… ele ou ela simplesmente não responde mais. E o pior, sequer visualiza suas mensagens, não importa em qual rede social ou aplicativo de mensagem. O drama do “ghosting” — como é chamada a prática contemporânea de deixar de responder às mensagens de um amigo ou parceiro amoroso sem qualquer aviso prévio — está no cerne do livro “Copo Vazio” (Todavia, 2021).

Na história, Mirela é forçada a lidar com seus demônios internos, a vulnerabilidade, a solidão e o terror do abandono quando Pedro, com quem está iniciando uma relação, desaparece de sua vida sem explicação. Primeiro romance da psiquiatra e escritora paulistana Natalia Timerman, finalista do prêmio Jabuti com o livro de contos “Rachaduras” (Quelônio, 2019), a obra navega pelo psicológico instável de sua protagonista, aprofundando-se em suas carências e temores mais íntimos.

Em seu mergulho pela psique dessa mulher, o livro acaba adentrando um universo literário repleto de personagens femininas tragicamente abandonadas, entre as quais algumas inesquecíveis, como Emma Bovary e Anna Karenina. E mostra como o abandono é potencializado pelas redes sociais, tornando o fenômeno ao mesmo tempo profundamente contemporâneo e atemporal.


Ontem Pedro estava aqui, participava do dia de Mirela, contava de sua manhã, sua noite de sono. Escrevia mensagens espontâneas, parecia pensar nela boa parte do dia, solicitava sua presença. Hoje, nada. Ela escreve mensagens pelo WhatsApp e ele as vê e continua em silêncio. Mais uma, vai que estava ocupado. Nada. Pe, quero falar contigo. Nada. Por favor, Pedro. Responde. Nada. Pedro? Nada. Nada. Nada. Nada. Pedro, seu covarde, seu merda, seu babaca.

Nada.

Limpar conversa — apagar mensagens: em alguns segundos, os meses de comunicação virtual são todos eletronicamente destruídos. As primeiras frases trocadas, as brincadeiras, o dia em que combinaram de se ver pela primeira vez, a mensagem que ele escreveu depois disso, que ela esperou e gostou tanto de receber: em instantes, nada disso existe mais, pelo menos não no celular dela. Talvez no dele? Não importa. Apaga também o número de telefone de Pedro: nunca mais vai falar com ele. Tenta dormir.

Às 2h57, entra no registro de ligações do telefone e identifica, pelo horário, as chamadas que havia feito a Pedro no dia anterior. Anota de novo o número. Pedro, preciso falar com você, é importante. Nada.

Todos os dias, quase todas as horas, Mirela entra na página de Pedro no Facebook atrás de atualizações, de notícias da existência dele. Será que está bem? Será que está vivo? Ele não sumiria assim se algo muito grave não tivesse acontecido. Na tarde de quinta, três dias após o início da verificação quase constante, ele compartilha um artigo sobre os meios de comunicação de massa e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Mirela curte. Sai da internet, se concentra no trabalho. Ou tenta. Seu corpo está rígido, por detrás dos olhos e da garganta há uma memória salgada de choro. Atende um telefonema, tenta sustentar a voz, não a deixar murchar. Um cliente perguntando se pode mudar a reunião para outro dia. Claro, ela diz, graças a Deus, ela pensa. Entra de novo na página de Pedro no Facebook. Online!, ele está online. Escreve? Melhor não. Já não está mais online. Ainda bem que não escreveu. Da próxima vez, alguns minutos depois, lá está a bolinha verde: diante de alguma tela está Pedro, assim como ela, logo ali. Antes que se pergunte se deve ou não, escreve por mensagem: Pe, tentando muito falar com você.

Todos os dias, quase todas as horas, Mirela entra na página de Pedro no Facebook atrás de atualizações, de notícias da existência dele. Será que está bem?

Ele visualiza e não responde.

O Instagram. Pedro não costuma postar muitas fotos e, as que há, Mirela já conhece de cor, ângulos, expressões, ambientes, detalhes. Durante a semana, nenhuma novidade. Sábado, uma foto da Serra de São José. Ele foi! Mirela não pode acreditar que Pedro foi sozinho à viagem que eles fariam juntos. Quer gritar, quer urrar, quer bater.

Quase em silêncio, emitindo poucos grunhidos, abafa a raiva com a almofada do sofá.

Deixa de segui-lo no Instagram, mesmo sabendo que de nada vai adiantar: o perfil dele é aberto e ela pode ver as fotos quando quiser. A menos que ele a bloqueie.

Mirela desfaz a amizade com ele pelo Facebook, como se isso fosse atingi-lo de alguma forma, ou para que ela mesma não tenha acesso a todas as atualizações que ele posta. Por ambos os motivos, talvez. Depois se arrepende. No dia seguinte, solicita de novo sua amizade. Três dias para ela se conformar que ele não aceitou.

E alguns outros para que, ao buscar Pedro Franchesconi na rede social, apareça nome não encontrado, refaça sua busca. No Instagram: nome inexistente.

Bloqueada. Manda de novo uma mensagem pelo WhatsApp, mas em vez de dois tiques ao lado da hora de envio, aparece só um.

Mirela cria uma página falsa no Facebook e outra no Instagram utilizando um e-mail que cria apenas para isso. Pensa em usar um retrato de mulher do Egon Schiele como foto de perfil, mas imagina que, caso os aplicativos e seus algoritmos a sugiram como amiga a Pedro, ele possa desconfiar que seja ela. Recorta, então, uma imagem de tigre de um clipe da Valesca Popozuda e a seleciona como foto de rosto. Joanna Romma, escolhe como nome; coloca umas fotos de flores na linha do tempo, escreve bióloga no campo profissão, e pronto. Entra quase diariamente nas páginas de Pedro; usa mais os perfis falsos que o verdadeiro.

No dia seguinte, solicita de novo sua amizade. Três dias para ela se conformar que ele não aceitou.

Pelo Google, Mirela descobre o dia da defesa de tese de Pedro na universidade. Ele estará lá, logicamente: é a única possibilidade que tem de encontrá-lo. A única chance que tem de estar onde ele certamente estará também. Três meses e meio após terem se visto pela última vez.

Será que vai?

Não. Sabe que ele a odiaria para sempre.

Deseja boa sorte através de uma mensagem que não chega.

Utilizando os perfis falsos, Mirela descobre que, depois de defendida a tese, Pedro se mudou para Belo Horizonte. Fica sabendo, passados outros dois meses, que a avó de Pedro morreu. Ele deve estar sentindo muito, pensa, entristecida. Um e-mail, como não teve essa ideia antes? Escreve um e-mail, sem esperança de que ele responda, com esperança de que ele responda.

No dia seguinte, em sua caixa de entrada, um susto. “Obrigado, Mirela. Foi de repente, mas ela já tinha 87. Estou triste mas estou bem.” Mirela repete as condolências, escreve que estava mal com a distância dele, mas já está melhor e pede que ele a desbloqueie das redes sociais. “Ora, mas eu nunca te bloqueei.” No dia seguinte, já não precisa do perfil falso para ver as atualizações de Pedro ou mandar mensagens. Que ele quase nunca responde, ou responde erraticamente.

Mirela passa a semana se perguntando o motivo de Pedro ter desbloqueado seu acesso às páginas dele depois de dizer que nunca a havia bloqueado. Uma parte sua está certa de que ele está arrependido e quer retomar o contato e que muito em breve estarão juntos de novo. Outra parte, bem pequena, pensa que ele tinha medo de que ela falasse mal a seu respeito para os poucos amigos em comum, e agora, morando em outra cidade, estando longe, não faz diferença deixá-la ter acesso à sua vida virtual.

Uma parte sua está certa de que ele está arrependido (…). Outra parte, bem pequena, pensa que (…) agora, morando em outra cidade, estando longe, não faz diferença

Esmaga a parte menor e fica com a certeza da primeira opção.

Produto

  • Copo Vazio
  • Natalia Timerman
  • Todavia
  • 140 páginas

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