Coluna do Leandro Sarmatz: Caleidoscópio pandêmico — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

Caleidoscópio pandêmico

Passo meus dias, de moletom e melissinha, trabalhando, ganhando peso e arruinando meu fígado a partir das 18h30

15 de Fevereiro de 2021

Não sei vocês, mas ando bem desmemoriado. Tenho esquecido nomes, títulos de livros e filmes, nomes de rua. Dia desses – foi a gota d’água para o mergulho no hades do olvido – penei longos minutos no WhatsApp para resgatar das profundezas do meu cérebro um mero número de logradouro. No caso, do meu trabalho.

Claro: estou, como tantos outros que têm esse privilégio, trabalhando da minha casa há quase um ano. Como não recebemos mais visitas, fiz alguns rearranjos decorativos (precisava de muitas aspas aqui): um canto acolhedor da sala onde já havia algumas estantes converteu-se no office da minha home. É ali (aqui) que passo meus dias, de moletom e melissinha, trabalhando, ganhando peso e arruinando meu fígado a partir das 18h30. Na sala, a melhor conexão da casa, fico também próximo da minha filha, que atravessou o ano inteiro olhando para os coleguinhas numa tela do zoom. Um deles nunca percebeu que há um espelho às suas costas, na porta de um armário, então toda a turma o flagra quando ele escapa para começar a jogar um game. Consolo: a nova geração é discreta e fiel, pois os moleques nunca o delataram. Bonito isso. Queria ser assim.

Além de sem memória, ando digressivo pacas, pelo visto.

Minha filha entende cada variação dos meus hmm, e são tantos quanto as palavras para designar neve pelos esquimós

Acho que a falta de memória tem tudo a ver com o confinamento. Em casa, sem exercitar os laços sociais, ficando indignado com muito menos coisa “ao vivo”, sem me obrigar a articular perfeitamente como antes (minha filha entende cada variação dos meus “hmm”, e são tantos quanto as palavras para designar neve pelos esquimós), o resultado é uma desarticulação quase total. Manja personagem do Pinter, um abismo em cada fala telegráfica? Estou assim.

Sigo andando todos os dias pelo bairro. Mas como voltei à terapia depois de 20 anos graças a seguidos ataques de pânico ainda lá no início da pandemia, não posso mais exercitar meu esporte predileto: ficar puto com cada pessoa que atravessa meu caminho. Ah, e como eu ficava! Minha mulher, minha mãe, minha filha, todas tinham certeza de que um dia eu ainda ia apanhar de algum transeunte – mulheres, sempre tão maduras. Estou trabalhando nisso uma vez por semana ao telefone (sem vídeo a impressão de divã fica mais viva entre mim e a terapeuta). Claro que não me fazia bem. Mas eu não conseguia ser diferente. O sujeito com a guia do cachorro atravessada na calçada. Os grupinhos (trios e quartetos) de povo da firma andando devagar e falando ao celular. A mãe grã-fina de 30 anos perfeitamente saudável com a babá levando o carrinho de bebê.

Os religiosos (meu bairro tem muitos judeus ortodoxos) conversando em grupo e dominando a calçada como se Abraão, Moisés e David tivessem exigido isso na Torá. Os carros e as motos que quase me atropelavam. Tudo isso me exasperava e me fazia resmungar, praguejar e eventualmente chamar às favas as pessoas. Estava tudo se encaminhando para eu ser o louquinho do bairro, agora que o porteiro do Hotel Dublin que falava sozinho com sua pasta de 007 deu uma sumida.

Mas, como eu já disse, estou tentando mudar.

*

Sempre odiei cachorro e criança. Hoje sou pai de uma linda e esperta menina de 9 anos e igualmente pai-de-um-pet. A pequena já estava por aí para me contradizer e deixar minhas memórias de mocidade (eu era bastante eloquente em minhas diatribes contra casamento e filhos) ridículas ou apenas cômicas. O cachorro foi adotado no finalzinho de 2019, então ela é a pessoa com quem mais convivo, da manhã à noite. Antes das 7h da manhã já estamos na rua. Depois das 22h também. A muito custo e litros de removedor no chão de casa adestrei seus horários de banheiro. Mas há uma pegadinha, já detectada por todo dono de cachorro. Se eu ponho a máscara para eventualmente não sair com ele, o bicho fica animado demais. Na puberdade já, sua voz está engrossando, e por algum motivo eu não consigo deixar de pensar no latido dos cães nazistas. Latido grosso, alto, rascante, com um quê de ameaçador. E eu aqui, confinado. Quase sempre que o ouço penso na Anne Frank (que era igual a minha mãe quando mocinha). Ainda não comecei um diário, contudo.

Um dia tudo isso vai passar. E quando passar nós sairemos mais fortes disso – e também mais viciados. Em álcool, comida ou compras on-line

*

Tentei regular a bebida depois de tanto tempo. Consigo ficar um dia seco mas volto correndo para os braços de Dionísio com uma sede de mil desertos. Não há registro de alcoólatra na minha família, então provavelmente serei o primeiro. Um tipo de privilégio: dar início a uma linhagem. Quando criança eu sempre achava engraçado na novela o Reginaldo Faria chegando em casa e se servindo de uma generosa dose de whisky no buffet da sala em Ipanema. Hoje eu estou igualzinho, com a diferença que não chego em casa porque já passo o dia inteiro dentro dela. E eu também não me atiro na cama de terno cinza e sapatos. Minha avó se escandalizava sempre com isso.

*

Um dia tudo isso vai passar. E quando passar nós sairemos mais fortes disso – e também mais viciados. Em álcool, comida ou compras on-line.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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