CV: Marcelo Behar
Marcelo Behar aplica conhecimentos em áreas como Direito e administração na Natura & Co para promover uma sociedade mais sustentável
Foi de volta de um intercâmbio na Bélgica, ainda na adolescência, que o jovem paulistano Marcelo Behar abriu os olhos para a desigualdade escancarada que reencontrou no Brasil. Instigado a entender melhor nossa realidade social, decidiu cursar ciências sociais na faculdade. “Até hoje me vejo como sociólogo”, conta. Por lá, no entanto, entendeu que, para ajudar a mudar essa realidade, precisaria de instrumentos adicionais. Passou a se interessar por gestão e política pública e acabou se inscrevendo no curso de Direito, que, assim como ciências sociais, estudou na USP.
Desde então, vem tentando juntar esses dois mundos em sua carreira profissional. Começou na ONG Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), onde prestou assistência jurídica gratuita aos que dela precisavam. Também trabalhou na editoria Mundo do jornal Folha de S.Paulo, cobrindo política internacional. Quando o fundador do IDDD, Márcio Thomaz Bastos, assumiu o cargo de ministro da Justiça, em 2003, Behar foi chamado para ser assessor especial do Ministério. Lá, foi figura importante na Campanha do Desarmamento. “Foi um grande aprendizado de política pública, de como funcionam as estruturas de administração e como dar efetividade a uma ideia.”
No Ministério, também se aproximou de questões de meio ambiente, auxiliando a então ministra da pasta, Marina Silva, em ações de combate ao desmatamento ilegal. Pouco após deixar a Justiça, assumiu como secretário-executivo de Assuntos Estratégicos da Presidência na gestão Lula, onde mais uma vez esteve em contato com temas ambientais e sociais, como projetos para a Amazônia e a legislação de regularização fundiária.
Ao longo de uma carreira eclética, Behar ainda exerceu a advocacia por um curto espaço de tempo e atuou por quatro anos e meio na área de infraestrutura, como diretor institucional da Companhia Siderúrgica Nacional. Segundo ele, toda essa vivência, mais os seis anos que passou no setor de assuntos corporativos da Natura, foi essencial para o cargo que assumiu em fevereiro de 2020: vice-presidente de sustentabilidade e assuntos corporativos da Natura & Co, grupo que engloba quatro empresas internacionais e mais de 40 mil funcionários pelo mundo.
Tendo assumido o posto em um ano comprometido pela pandemia, o executivo vem trabalhando para implementar políticas de redução da emissão de carbono, combate ao desmatamento e reciclagem, buscando promover mudanças ambientais por meio de mecanismos corporativos. Para chegar à posição que ocupa hoje, aos 43 anos, ele valoriza todos os passos de sua trajetória. “Minha formação bastante diversa, minha trajetória no mundo empresarial e da comunicação, e a minha vontade. Foi o encontro dessas três coisas que me trouxe aqui.”
Em entrevista a Gama, Behar também falou mais sobre a carreira, sua missão no contexto atual e o otimismo que teima em manter quanto ao futuro da humanidade.
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G |Quais são os principais desafios da sua área e como lidar com eles?
Marcelo Behar |Nos comprometemos com metas ambientais muito ambiciosas este ano. Dentre elas, sermos carbono líquido zero até 2030 nas quatro empresas do grupo (Natura Cosméticos, Aesop, The Body Shop e Avon) e nos 100 países em que atuamos, um enorme desafio. Também temos uma meta que me é muito cara, de ajudar a construir os esforços coletivos para garantir o desmatamento zero na Amazônia até 2025, um objetivo que devia ser do mundo todo, especialmente da sociedade brasileira. O grupo Natura & Co, com seus 40 mil funcionários, também é uma das poucas empresas do mundo comprometidas com igualdade de gênero, com termos 50% de mulheres em cargos de liderança e equidade de pagamento. Mas o maior desafio é o econômico, garantir que teremos 100% de circularidade, que tudo que produzimos vai ser reciclável ou reutilizável. Estamos trabalhando com as empresas e os coletivos que podem nos ajudar a alcançar essas metas: o Fórum Econômico Mundial, o Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável e várias outras organizações globais.
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G |O que te trouxe até aqui?
MB |Tem a ver com aquilo em que acreditamos. Vivemos num momento em que é preciso abrir mão de recursos financeiros e de tempo para fazer aquilo de que gostamos. Não quero usar um chavão corporativo, mas há mesmo um alinhamento de valores entre o que acredito e o que faço. Quando o grupo formou uma estrutura para coordenar os negócios e tinha essa posição, foi um encontro bem natural entre minha trajetória, minha carreira, quem eu sou e o que essa função significa. Resumindo, minha formação bastante diversa, minha trajetória no mundo empresarial e da comunicação, e a minha vontade. Foi o encontro dessas três coisas que me trouxe aqui.
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G |Para atuar na sua área, o que um bom profissional precisa saber?
MB |Sustentabilidade é uma área bem ampla e ainda em construção. Ela tem uns 30 anos e engloba capacidades muito diferentes. Entender o funcionamento das empresas, ter conhecimentos básicos de administração e negócios é fundamental porque é preciso se conectar com aquilo que você faz. Ajuda a refletir sobre produzir melhor não só para o negócio, mas para o que a teoria econômica clássica chama de externalidades negativas: como não poluir, distribuir a renda, fazer as coisas de um jeito melhor. Ter noções de legislação também é essencial, porque dá uma base da qual partir e limites para sua atuação. Existe uma perspectiva tradicional das empresas de serem reativas, lutar contra, fazer lobby, tentar desativar mecanismos de melhoria de políticas públicas. Sustentabilidade é o oposto disso, é querer construir políticas eficazes para as empresas e as pessoas, para o planeta. É necessário também saber traduzir questões complexas como engenharia e inovação, uma linguagem mais científica e técnica que precisa ser passada para públicos diferentes, como funcionários, clientes, consumidores e cidadãos. Muitos públicos se comunicam com os temas da sustentabilidade.
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G |Quais lições você tirou do período como vice-presidente de sustentabilidade da Natura & Co?
MB |Uma delas tem a ver com sustentabilidade e esse ano maluco que estamos vivendo, com as pessoas assoberbadas e receosas. Quem consegue tocar o trabalho de forma remota precisa somar outras atividades, então tivemos que aprender a fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Nesse período, o grupo Natura & Co conseguiu lançar uma visão de sustentabilidade e construir com quatro empresas um trabalho de centenas de pessoas, sem nenhum exagero. O mais incrível foi que as pessoas acharam espaço, conseguiram trabalhar nisso apesar de como o mundo está. A sustentabilidade tem uma grande vantagem nisso. Como ela fala do mundo desejável, quem está envolvido nesse processo quer muito ajudar e dar uma contribuição pessoal ao tema.
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G |Qual a sua missão na sua profissão?
MB |O mundo vai rever padrões. Não só a pandemia, mas o tema ambiental está muito na cara. Estamos vendo grandes instituições financeiras dizendo que isso agora é um imperativo. Além disso, os EUA vão voltar ao Acordo de Paris, com as propostas para neutralizar suas emissões até 2060. Assim como tivemos um grande desafio ao longo do século 20, de fazer avançar a economia dos países em desenvolvimento, teremos um desafio global para descarbonizar as economias do mundo todo. Minha missão é ajudar nesse processo tanto do ponto de vista empresarial quanto de mobilização de grupos que queiram construir um novo modelo de funcionamento. Estamos no meio de uma discussão em muitos países, num ciclo de anúncios que formam o fim dos cinco anos do Acordo de Paris. O próximo será o de dar consistência a esse compromisso. Em 2021, em novembro, vai acontecer a COP26 (Conferência das Nações Unidas de Mudanças Climáticas) em Glasgow. Há uma alta expectativa de que o mercado de carbono seja regulamentado até lá. A missão este ano é ajudar a construir isso, para que todo o esforço da Natura & Co tenha um bom reflexo, consigamos tirar os incentivos de combustíveis fósseis e mudar o jeito que produzimos. Isso vai gerar empregos novos e diferentes, pode frear um processo grave em curso de aquecimento global e crise climática. E temos uma missão especial, que é dar um caminho para que o maior ecossistema do planeta, a Amazônia, seja preservado, garantindo a vida de seus habitantes.
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G |A paixão e a motivação andam juntas?
MB |Certamente. Quem está na área mas não se anima com esses temas deve sofrer muito porque, como os assuntos estão em construção, precisam de um elemento de conexão entre o que vai ser construído e o que temos hoje, que deve ser feito pelo intelecto e pela vontade, pelo ânimo. Se não nos animarmos a construir essas coisas, elas não virão por si sós. A sustentabilidade precisa que quem esteja envolvido com ela goste do que faz, tenha energia. Só temos o plano A. Se não der certo, vai ser dificílimo para nós como espécie.
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G |Você acha que falhou em algum momento?
MB |A gente falha muito ao longo da carreira. Antes da Natura e do mundo corporativo, eu tive uma experiência dura, que foi o referendo [sobre a proibição do comércio de armas, no período em que foi assessor especial do Ministério da Justiça]. Não sei se foi uma falha, mas foi um revés grande para uma construção de política pública que estava em curso, uma experiência que me marcou bastante. E me deu aprendizados importantes, de como não dar por certo coisas que podem mudar. No mundo profissional, tive um desafio grande no meu tempo de infraestrutura, de tentar criar um caminho para a construção do aço verde [produzido a partir de carvão vegetal de reflorestamento]. Isso também não consegui levar adiante, o que me ensinou que os temas de sustentabilidade só vão avançar quando tiverem incentivos maiores, para além das decisões individuais das empresas. O Brasil foi pioneiro em construir uma noção de acesso ao patrimônio genético, que agora vai ser cada vez mais importante para a proteção da biodiversidade. Mas a construção desse marco legal está precisando se aprimorar para proteger melhor as comunidades e as populações tradicionais. Então estamos devendo nesse aspecto. Não é só um tema da Natura, mas do Brasil. Talvez a COP do ano que vem seja um bom momento para o mundo corporativo discutir como pode ajudar os verdadeiros guardiões das florestas, as populações tradicionais, a terem acesso a recursos para desempenhar a função ambiental. Então é isso, a cada passo atrás a gente vai aprendendo uma lição.
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G |Você se considera uma pessoa otimista?
MB |Eu me considero uma pessoa radicalmente otimista, por dever de ofício e porque sou mesmo. Sei que o futuro será complexo, mas temos muita coisa na mão para resolver os problemas. Essa pandemia foi sobre isso. Sofremos muito e tivemos perdas enormes, mas conseguimos uma vacina num tempo recorde. No passado, tínhamos um buraco na camada de ozônio. Paramos de emitir gases de refrigeradores que estavam causando isso e conseguimos recompor. Com o carbono vai ser parecido. Temos um aquecimento global em curso, não estamos dando os passos corretos, mas em algum momento virá uma tomada de consciência de que isso é um problema real e vamos encontrar soluções coletivamente. Então tenho sim otimismo para o futuro e tento agir buscando encontrar essas soluções. Não é um otimismo delirante, mas com base em nosso potencial. Num ano tão difícil, é importante olhar para a frente com esperança, e essa é uma coisa que tento fazer no dia a dia.