Diversas maneiras de viajar por aí — Gama Revista
© Pedro Lins

De carro ao Uruguai Essa foi a viagem feita por Tato Coutinho há um ano. Na série de quatro textos, ele lembra como tudo começava com uma boa história e terminava com uma vontade danada de fazer tudo outra vez

1


Viajar

Tato Coutinho 04 de Agosto de 2020

Meu amor pelos uruguaios vem de vidas passadas. Sei que estive no Maracanã em 1950 torcendo em silêncio por Obdúlio Varela, el negro jefe, e que vibrei sem piedade pelo choro continental do Maracanazo. Quase me comovi com o sofrimento de Barbosa e Augusto, mas só por um momento – quem mandou jogar no Vasco? Era este ser do contra quem se sentava à mesa em que decidíamos nossa viagem ao Uruguai:

– Por que não ir de carro?

Voar não era uma opção. E não tanto pela virtual impossibilidade de encontrar passagens razoáveis entre os aeroportos de Congonhas, em São Paulo, e Carrasco, em Montevidéu – uma das alternativas impunha conexões no Rio e em Santiago do Chile, alongando um voo de três horas para quase 20, incluindo uma escala madrugada adentro. As razões eram de outra natureza.

Toda viagem é sempre boa e as boas são sempre incríveis – mas nem toda viagem incrível é necessariamente uma grande viagem

As grandes viagens nascem de sutilezas. Toda viagem é sempre boa e as boas são sempre incríveis – mas nem toda viagem incrível é necessariamente uma grande viagem. Quando fomos a Cuba, por exemplo, o roteiro se ofereceria num suspiro de Alberto, um velho amigo havanês hoje auto exilado em Miami depois de 22 anos de Brasil. Numa concessão ao nosso romantismo de esquerda, ele nos confessou a viagem que adoraria poder fazer não tivesse nascido sob o regime de Fidel – em que hotel ficaria em Habana Vieja não restasse a casa da família em Cerro, em que resort deitaria à sombra das palmeiras não se ofendesse com a deformação servil de Varadero, em que bairro buscaria uma casa de família para se hospedar em Santa Clara não houvesse endurecido sem ternura pelo célebre filho adotivo da cidade.

Partir ao Uruguai nasceria de uma sutileza como aquela. Entre os muitos combinados das viagens que fazemos em família um manda conhecer ou o mercado público ou o zoológico ou um estádio de futebol – de preferência em dia de jogo – em pelo menos uma das cidades por onde passamos. Até que Pedro crescesse, viajamos sempre juntos perseguindo lugares que suplantassem as cores e perfumes de La Boqueria, em Barcelona, o misto de esqueleto e bicho vivo do Jardin des Plantes, em Paris, e a mística maradoniana de La Bombonera, em Buenos Aires – mas de uns tempos para cá, o menino deu para preferir a companhia dos amigos em mochilões com sabe-se lá que outros propósitos. Quando sua viagem de julho deu ruim inviabilizada pelos compromissos de uma turma a caminho dos 20 anos e ele anunciou que iria assim mesmo, sozinho…

– E agora?

– Não vai.

– Mas ele já não é um adulto?

– …

– Quantos anos você tinha quando viajou para o outro lado da Cortina de Ferro com aquela turma esquisita?

– Diferente.

– Por quê?

– E se fizéssemos uma viagem que ele gostasse de vir junto? Nada de hotéis marcados com antecedência nem de um roteiro muito fechado, certamente pela América do Sul para pôr em prática o espanhol e con al menos un destino con mucha naturaleza involucrada, tal vez una playa.

As grandes viagens podem nascer de premissas muito erradas e a sutileza aqui residia em fazer com que a nossa desse certo

As grandes viagens podem nascer de premissas muito erradas e a sutileza aqui residia em fazer com que a nossa desse certo. A bem sucedida ideia de Maria incorporaria ao planejamento um viajante experimentado em roteiros de baixo custo, com mais de 60 alfinetes espetados nas três Américas e na Europa de um mapa mundi estendido na parede do quarto, os amarelos para os destinos com pai e mãe e os vermelhos, verdes e azuis para aqueles em companhia das recorrentes turmas de amigos. Aos poucos o caminho foi se desenhando ao incluir as paradas de apoio para avançarmos a Montevidéu, no extremo sul de nossa invernada, e depois voltarmos a São Paulo, com uma estadia de descanso na casa da família em Florianópolis.

Por circunstâncias que podem variar de caso a caso neste momento de desregulamentação das finanças domésticas, para usar um eufemismo em linha com a distopia neoliberal em curso, decidimos fazer uma viagem modesta, ao largo dos cadernos de turismo – mas sem que faltasse nada importante, dos asadosy cervezas a dois banhos quentes por dia e colchões de espuma densidade 28 no prazo de validade. Ao longo da estrada, na ordem em que as fomos alcançando, escolhemos nos deter em Lapa, no Paraná; em São Miguel das Missões, no Rio Grande dos Sul; Carmelo, Colônia de Sacramento, Montevidéu e Cabo Polonio, no Uruguai; Porto Alegre e Aparados da Serra, retornando ao Brasil a leste dos pampas; e Florianópolis, na última escala antes de voltar a São Paulo – 18 dias e 4.890 quilômetros depois.

Tato Coutinho é botafoguense e jornalista, com passagens pela Editora Abril, TV Cultura de São Paulo e Editora Trip. Atualmente trabalha no núcleo de linguagem da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty *A imagem que ilustra a investigação é a casinha na calle De San Pedro, a poucos passos do farol de Colônia de Sacramento, na ponta em que a cidade avança sobre o rio da Prata. O desenho de Pedro – o Pedro do Tato – é expressão da substância delicada que tornam únicas as viagens que fazemos em companhia dos filhos

LEIA O PRÓXIMO TEXTO

1
2
3
4

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação