Ruiva no Rio
A tradutora americana Flora Thomson-DeVeaux é o nome por trás da pesquisa do podcast ‘Praia dos Ossos’. Mas faz muito mais que isso
Quem ouviu “Praia dos Ossos”, podcast da Rádio Novelo sobre o assassinato da socialite Ângela Diniz pelo namorado Doca Street em 1976, deve ter entendido que por trás daquela longa e cuidadosa investigação, crucial para o sucesso da série, estava o nome de Flora Thomson-DeVeaux. A tradutora norte-americana nascida na Virginia é citada nos primeiros episódios como “pesquisadora”. Mais para frente, compreende-se que ela faz muito mais que isso. Acompanha a narradora e idealizadora do programa, Branca Vianna, nas entrevistas; assina, com um time, os roteiros; e tem o mérito de conseguir, entre outras coisas, acesso a Doca Street, o autor do crime que é dissecado ao longo de oito episódios. Nesse contexto, “pesquisadora” parece pouco.
Mas depois de uma hora de conversa com Flora aceita-se a descrição. Ela mesma se define com os predicados que são pré-requisito para ser uma boa pesquisadora (e, mais até, uma investigadora): é curiosa e obsessiva.
O trabalho de pesquisa de “Praia dos Ossos” iniciou-se há dois anos. Flora passou cerca de dois meses enfiada em bibliotecas, acervos de jornais e em plataformas digitais como a Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (seu xodó), para montar um mapa de personagens vivos, mortos, dos núcleos nas diferentes cidades por onde Ângela Diniz passou, e a partir dali traçar a estratégia sobre quais entrevistas seriam fundamentais para o “prainha”, como ela chama o podcast. Montou um fichamento enorme em ordem cronológica por décadas, de 1950 até hoje, um trabalho que, segundo ela, poderia tê-la feito “feliz por seis meses”.
Na entrevista do Doca, ficou o registro da minha ansiedade em letras garrafais no arquivo
Acontece que a maior parte dessas pessoas eram muito idosas e, depois que o primeiro personagem morreu, ficou complicado seguir apenas com a pesquisa. Branca decidiu que era hora de começar as entrevistas.
As duas iam juntas. Flora ficava em um canto, no computador, mandando pistas à Branca por meio de um arquivo compartilhado pelas duas em tempo real. “Na entrevista do Doca, ficou o registro da minha ansiedade em letras garrafais no arquivo.”
O roteiro foi uma etapa igualmente complexa. “Em um primeiro momento a gente achava que ia resolver a oito mãos. Mas jogamos a toalha e tentamos outro método: eu sentava com os roteiristas e fazia uma checagem dos fatos em cima dos arcos dramáticos de cada episódio. Eu infernizei a vida deles e vice-versa”, conta. Por fim, até na narração de Branca Vianna Flora palpitou. “E fico muito feliz que nossa amizade tenha sobrevivido a isso.”
“Uma trabalheira dos infernos”, e por isso mesmo deve doer (e dói, ela afirma) quando ouve que “Praia dos Ossos” foi maratonado em um dia. “As pessoas pensam que o cronograma de um podcast desses parece com uma produção do Youtube. Mas tem mais a ver com cinema mesmo.”
Não matamos o dragão em 1981, o caso da Ângela é o caso da Ângela, mas é também o de tantas mulheres
Com o fim do podcast e as notícias diárias de novos casos de violência contra a mulher, muita gente sugere que a Rádio Novelo faça novas temporadas de Praia dos Ossos. “Não matamos o dragão em 1981, o caso da Ângela é o caso da Ângela, mas é também o de tantas mulheres. A gente espera ter abordado o cerne dessas questões, mas as respostas individuais têm muitos ângulos a serem abordados, não há uma única solução. É a ocupação das instituições, é reforçar a rede de apoio, é ter na legislação mais mulheres, são mil medidas para conseguir tirar a gente um pouco desse buraco. E por isso a gente não vai fazer um novo episódio a cada novo abuso desses.Não ia acabar nunca e seria o podcast mais deprimente da história.”
Pódcasht, Princeton e Machado
Flora contou sobre o processo de trabalho e criação do podcast narrativo que virou febre em 2020 com um português com sotaque carioca temperado por discretos Rs do interior paulista. É espantoso que tenha começado a aprender português apenas na graduação, em Princeton, e que sua primeira visita ao Brasil tenha ocorrido num intercâmbio em 2011. Ela conta que caiu no papinho da turma do Departamento de Português e Espanhol de que a primeira seria uma língua muito fácil. “Mentira absoluta.”
(Aqui um parêntese para dizer que a relação entre Flora e o Brasil teve seus lances de acaso. Ela era fascinada pelo slogan informal da Universidade de Chicago, “onde a diversão veio morrer”, o sonho de qualquer nerd. Também queria ficar um pouco longe dos holofotes da irmã, a jornalista política e de dados Amelia Thomson-DeVeaux, espécie de celebridade no meio em que navegavam. Mas uma bolsa em Pricenton, onde Amelia estudava, foi irresistível. Em Chicago, onde o departamento de Português não era tão forte, Flora provavelmente não teria se aproximado do Brasil.)
Foi em Princeton que Flora estreitou os laços com a música popular brasileira, aliada para entender tempos verbais (“Chuva, Suor e Cerveja”, de Caetano Veloso, ensinou o imperativo com “Não se perca de mim”, por exemplo). Foi convocada a traduzir documentos para uma biografia de Carmem Miranda e apaixonou-se pela música das décadas de 1920, 30 e 40.
Também na graduação leu “Memórias Póstumas de Brás Cubas” pela primeira vez. “Sabe quando você faz uma espécie de amizade com um livro? Uma coisa de bater o santo. Notei que ia ser uma referência para mim, que eu recomendaria sempre a outras pessoas.”
Flora cismou com Machado. Começou a traduzir trabalhos acadêmicos sobre sua obra, como o do pesquisador João César de Castro Rocha, e por fim concluiu que o inglês precisava de uma nova tradução de Brás Cubas. Decidiu ela mesma cuidar da tarefa que, anos mais tarde, foi publicada pela Penguin Classics e ganhou destaque com resenha elogiosa na New Yorker.
Ruiva no Rio
Há três anos, Flora Thomson-DeVeaux é residente do Rio de Janeiro. “Não sei em que momento tomei a decisão, mas quando vim ela já estava bem tomada. Tudo começou com um intercâmbio, um semestre no Rio, outro em Buenos Aires. Mas o Rio é covardia, o Rio me ganhou.”
Em 2012, ganhou uma bolsa de pesquisa feita em cima da vida e da obra de Santiago Badariotti Merlo (1912-1994), mordomo da família Moreira Salles por mais de 30 anos e que foi tema de documentário de João Moreira Salles (casado com Branca Vianna) de 2007.
Via Santiago como alguém criado por Borges e criei ódio do João. Soube que ele ia dar um curso na universidade, e me recusei a me inscrever
Flora havia feito uma disciplina sobre cinema brasileiro dois anos antes, que terminava com o filme. “Tendo grande identificação com os grandes personagens da literatura argentina, eu o via como alguém criado por Borges e criei ódio do João. Soube que ele ia dar um curso na universidade, e me recusei a me inscrever, mas fui convencida por três professores”, conta.
João ficou muito intrigado com a adolescente que estava imersa naquele mundo tão distante: Flora pesquisava a febre do tango no Rio nos anos 1920 e 1930. Os dois se aproximaram, ela foi ao Rio seguir com a pesquisa. Neste período, resolveu ler o manuscrito de 24 mil páginas de Santiago (ao contar aqui, ela relembra: é curiosa e obsessiva). Foi nessa época também que conheceu as pessoas que trabalhavam no Instituto Moreira Salles, na revista Piauí, e Branca Vianna. “Mas a Novelo ainda era a pré-história, éramos só eu, Branca e Paulinha (Paula Scarpin, com quem se casou em 2017) falando sobre fazer podcasts”, conta.
Já não me sinto tão principiante assim. Tenho mais propriedade em todos os sentidos, sinto o país mais meu
Nesses três anos em que é “residente estável” do país (sem idas e vindas como fez desde 2011 e mesmo depois que ingressou no doutorado na Brown University em 2014), Flora concorda com a frase de Tom Jobim, citada por Branca em “Praia dos Ossos”, que diz que “o Brasil não é para principiantes”. “Primeiro que a frase é verdadeira, mas já não me sinto tão principiante assim. Tenho mais propriedade em todos os sentidos, sinto o país mais meu”, afirma, mas logo diz que mesmo tendo fincando raízes, não deixa de se surpreender. “Nunca estou em terreno firme e acho isso muito saudável. Gosto de ser estrangeira, de não ter a mesma capacidade de naturalização da história e das coisas. Presumo menos.”
Esse olhar, mais que um aliado, é um trunfo para seu trabalho. “Posso até me familiarizar com o passado recente, mas a pesquisa histórica me surpreende. E eu não vejo isso se esgotando, espero não perder essa curiosidade”, afirma.
Flora tem uma tradução e uma pesquisa para um novo podcast em curso, mas não dá mais pistas. Diz apenas que suas obsessões não são muito planejadas. “Tenho um projeto muito particular que é sentar e ler meus dicionários do século 19 e ver o que sai dali. Toda vez que os consulto aprendo algo sem querer. Bato o olho e, além da palavra, tem algo sobre o cotidiano material da época. Não respeitamos os dicionários como deveríamos, são repositório de conhecimento, fotografias da sociedade. É o que me dá mais comichão no momento, tem muita coisa engraçada e surpreendente”, diz, reafirmando os predicados de curiosidade e obsessão que parecem defini-la tão bem.