Há quatro anos faço uma acupuntura para as costas que não me serve de nada. A acupunturista é ruim (e aqui já começo falando mal de alguém) e falsa. Acontece que foi uma amiga muito bonita e muito bem-sucedida que me indicou essa profissional e acontece que toda terça-feira, às 10 horas, eu e a acupunturista nos acabamos de tanto falar mal dessa amiga em comum. “Aquele corpo maravilhoso e ela faz o quê? Vive de moletom, descabelada, em casa, com um marido que odeia.” Falamos como tanto sucesso não lhe serve de nada, posto que a “pobre” vive mal, infeliz, atormentada e maluca. Falamos como tamanha inteligência não joga a favor da “amiga” estupenda e milionária: ela vive cercada de gente burra e atarefada por um trabalho estúpido.
Fico eu lá, pelada, toda cravejada de agulhas, a luz meio apagada, uma música holística tocando de fundo. Falando horrores da amiga. E a acupunturista toda de branco. Voz doce, pausada e terna. Esculachando a mesma conhecida. Há quatro anos isso nos une. Sabemos que estamos erradas. Sabemos que não orna com aquele momento. Não gostamos uma da outra (preferimos, obviamente, a querida em comum que malhamos). Mas não conseguimos parar. Se eu falto à sessão, minhas costas pioram. Contudo, foi o que eu fiz nesta última terça: me ausentei por um motivo nobre.
Minha missão para escrever este texto é não falar mal de ninguém por uma semana. Faltei também na fisioterapia. Meu fisioterapeuta é um cara bastante sério e estudioso, mas em todos esses anos de dores crônicas nas costas eu nunca conheci uma pessoa mais fofoqueira. Pronto, já estou falando mal do fisioterapeuta. Você chega com enxaqueca de tanto que a sua cervical está inflamada e ele fala “pior é o fulano jornalista famoso que acabou de sair daqui, broxou com aquela atriz, sabe?”. Ele conhece todo mundo e fala mal de todo mundo. Eu sempre saio de lá com a promessa interna de jamais voltar – “nossa, tá louco, esse cara certamente faz o mesmo comigo, deve expor meus podres, um horror” -, mas eu não suporto ficar uma semana longe daquele pequeno antro vertiginoso de maledicência. É uma maravilha.
Se você pertence ao grupo das pessoas que conhece as pessoas que produzem esta revista, certamente já falamos barbaridades sobre você. Eu sei que você paga de equilibrado intelectual, mas passa as madrugadas stalkeando umas meninas péssimas de direita. Eu sei que você já traía loucamente o seu marido quando ele disse que estava pensando em abrir a relação (e você foi profundamente contra e chorou muito, mas já tinha dois caras com quem saía fazia mais de um ano). Eu sei. E tudo bem.
Eu e o fisioterapeuta já falamos mal de tanta gente que teve uma sessão em que ficamos meio sem assunto. Ele começava algum papinho e eu cortava “ah vá!”. Eu tentava uma maldade e ele ria “eu que te contei isso”. Nesse dia eu dormi, relaxei, até melhorei das dores nas costas. Foi chatíssimo.
Mas, como eu dizia, porque levei muito a sério minha contribuição para este espaço, também não fui à aula de pilates específica para quem tem problemas na coluna. Eu e a personal nos amamos muito e o que nos conecta tão fortemente são as notas de 0 a 10 que damos para o odor vencido dos tiozinhos da academia. O “sete ponto cinco” é até bonitão, mas, por Deus, ele fede à roupa que secou na chuva tóxica. O “nove ponto nove” é o motivo pelo qual reformaram todo o andar de crossfit com um sistema de circulação de ar mais apropriado. Não dava para simplesmente proibir a entrada desse desgraçado, então remodelaram a academia colocando novas janelas, portas corta-fogo e splits de ar condicionado.
Não existe relação com a minha mãe se não acabarmos com a raça do meu pai. Não existe assunto com meu pai se não listarmos os motivos pelos quais achamos minha mãe insuportável
Eu estava fazia quatro dias e meio sem falar mal de ninguém! Cheguei a mais da metade da minha tarefa aparentemente impossível tendo sacrificado boa parte da minha rotina. Conforme narrei, evitei ao máximo sair de casa, dar trela para as pessoas pelo WhatsApp (eu me divirto muito mandando fotos de conhecidos que exageraram no dermatologista e se tornaram apenas grandes bochechas; são casos muito interessantes em que a bochecha vai fagocitando todo o resto do rosto) e, sobretudo, encontrar qualquer membro da minha família. Não existe nenhuma relação possível com a minha mãe se não acabarmos com a raça do meu pai. Não existe assunto provável com meu pai se não listarmos todos os motivos pelos quais achamos minha mãe insuportável. E, uma vez junto deles, nos dedicamos a falar mal de todo o resto da família. Sei que meus pais, quando não estou, podem passar horas ininterruptas fritando minhas duas orelhas na febre da detração. Somos assim.
Toda a raiva que senti lendo jornais e ouvindo podcasts sobre política guardei para mim. Tive ímpetos de correr às redes sociais para demonizar e ridicularizar o presidente e sua entourage, mas estar ocupada e gripada me ajudou a não fazê-lo.
Penso que, afinal, sou boa pessoa. Penso que, agora que me tornei mãe, tendo a gostar mais de todas as pessoas: todo mundo é filho de alguém. São 108 horas sem falar mal de ninguém e esta revista (por meio dessa incumbência) fez por mim o que 21 anos de terapia não puderam: estou me achando legal.
E, por falar em terapia, não pude faltar (pois eu pago mesmo quando não vou), mas cheguei avisando que estava brincando de “vaca-amarela-da-difamação” e que, portanto, não sabia muito como existir. Se eu não posso espinafrar minha mãe, meu marido e eu mesma, de que me servem a voz, o cérebro e pagar R$ 400 a hora? Minha analista quis conversar sobre o motivo que me leva a topar mais trabalho quando já estou à beira de mais uma crise de pânico de tantos afazeres e eu não pude responder porque diria que sou compulsiva, obsessiva, ansiosa e insegura (tenho medo de que, ao dizer não para pessoas literatas – como as que fazem esta revista -, uma cratera de esquecimento e mediocridade se abra me engolindo para sempre). Passei uma hora falando bem do antidepressivo Efexor XR 75 mg. Foi o que consegui.
Tudo caminhava bem até que, no quinto dia, eu estava em uma reunião de roteiro quando me apresentaram a um empresário (provável novo sócio da produtora) extremamente playboy e agressivamente defensor do atual presidente. Lembrei daquele cabelo “wannabe Álvaro Garnero mas sou também meio careca” e dos dentes ridiculamente brancos. Já tinham me mostrado esse cara, no Instagram, vestido de super-herói na passeata de apoio ao ministro Sergio Moro.
Quando o sujeito saiu da sala, toda a equipe me olhou esperando que eu o descascasse com minha já conhecida incredulidade na estupidez humana
Ele nos cumprimentou com uma mão molenga de nojinho, pois, aos seus olhos, éramos mendigas horrorosas que (credo!) trabalhavam. Ele estava acostumado a Barbies fascistas, sempre impecavelmente vestidas para o Oscar, que jamais em vida trocariam um único pensamento minimamente plausível por poucos reais. Quando o sujeito saiu da sala, toda a equipe me olhou esperando que eu o descascasse com minha já conhecida incredulidade na estupidez humana e ojeriza profunda pela arrogância dos pretensamente superiores. Os olhares me imploravam: “vai, Tati, humilha esse cara pelo amor de Deus!”. Fala tudo que a gente quer falar mas está esperando você começar porque você, mais do que todos nós, odeia esse tipo. Já riam, já se cutucavam. “Ela não vai aguentar não acabar com ele.”
E eu de fato não aguentei. Eu falei mal do elemento por mais de uma hora. As palavras brotavam como estupendos girassóis após uma madrugada fresca de outono. Meu veneno se lançava freneticamente à luz porque, eu então descobria, aquietar tamanho maldizer era o que pertencia às trevas. Finalmente! Foram muitos dias, muitas horas! Enfim, fracassei! Mas acho que posso ser perdoada porque nem sempre se falha assim, tremendamente, por uma causa tão boa.
* Tati Bernardi tentou ficar uma semana sem falar mal de ninguém – e em reclusão – quando confinamento ainda era uma prática distante dos brasileiros
Tati Bernardi é roteirista e escritora, autora de "Depois a Louca sou Eu" e "Homem-Objeto e Outras Coisas Sobre Ser Mulher"