Fernando Henrique
Espaço neutro
A proxima década será branca, preta, parda, mestiça, mulata, mameluca, cafuza, cabloca, indigena. Ou não será nada
Passados alguns meses de confinamento por causa da covid-19 começaram os sintomas da busca por um espaço neutro. A discussão com os amigos nas redes sociais e mesmo na terapia já não são suficientes. O conflito de ideias é constante neste momento, as fronteiras entre vários países continuam fechadas, ir e vir é um artigo de luxo. A viagem possível, por hora, é a mental.
Minha vida é uma especie de conexão, meu projeto me fez viver entre São Paulo, Nova York e Paris, cidades onde o meu coração bate de maneira diferente. Repentes de ódio, com algumas notas em bemol e batucadas de ansiedade tornaram-se comuns nos últimos tempos.
A expectativa de ser/estar fez com que eu — e muitos de nós — buscássemos uma espécie de recriação. Essa reivenção começou há pouco: aos 38 anos, fiz a peregrinação da busca pela liberdade.
Na estratégia de trazer a arte como aliada, recorri ao artista americano Robert Smithson, que em seu trabalho explora com dinamismo e sofisticação a ideia de ir além. Em 1972, ele questinou como um curador impõe seus limites em uma exibição de arte, em vez do artista dar os seus proprios limites.
É preciso de tempo e atenção para refazer o mesmo caminho algumas vezes. Apreciar os detalhes é o ponto mais crítico e mais importante
Pai da “land art“ , Smithson ultrapassa a dimensão de forma momumental, criando algo que não cabe em um museu, ele dá o tamanho que acredita para sua ideia.
Essa fidelidade ao seu eu, algo que ele imprime na obra “Spiral Jetty” (1970), escultura em espiral feita com terra e pedras dentro de um lago de sal em Utah, nos Estados Unidos, me fez atravessar o país para um reconhecimento do meu eu. O trabalho que me inspira a buscar um norte na vida está no Great Salt Lake, que fica no norte do país, coincidência ou piada pronta, trouxe uma certeza ainda maior de estar no caminho dessa tal liberdade.
O lago de sal é um lugar que nos aproxima e nos afasta. Aproxima porque dá a dimensão do seu exato tamanho; afasta porque sugere, para mim, a ideia de pensar o que poderia ser a construção de um ideal. Longas caminhadas solitarias depois de quase um ano vivendo em Nova York — a cidade que dizem que nunca dorme me fez dormir e viver os piores pesadelos: da saudade à falta de afeto; do amor puro e instantâneo à busca de independencia; e o pior de todos eles, a incompreensão.
Horas refazendo o caminho do espiral no encontro de um estado de consciência com um objetivo que me parecia bem simples e claro — transformar o corpo em uma ferramenta para que algo novo, intenso, sereno, pulsante e diferente de tudo que tinha feito até ontem floresça. O dia ensolarado extraía dor e angustia na cobrança de uma resposta rápida para compor um novo entendimento de um recomeço.
É preciso de tempo e atenção para refazer o mesmo caminho algumas vezes. Apreciar os detalhes é o ponto mais crítico e mais importante – como propõe o artista americano em seus trabalhos. Ele morreu no Texas em 1973, estado para onde viajei há pouco para ver de perto o funeral do homem afroamericano assassinado por um policial branco, George Floyd, que mudou tudo na minha construção e na minha identidade humana — as mortes que me deram vida.
Todas esses pontos incomuns com o meu e talvez com o nosso 2020 trazem à tona um mundo globalizado que faz com que tenhamos mais espaço (mas, infelizmente, não o suficente) para que possamos de fato estarmos presentes sempre.
Neste lugar a ingenuidade e a paciência despertam as melhores fases da minha nova vida. A unilateridade do trajeto me conduz para um outro espaço que a confusão mental remete às pinceladas livres e abstratas da canadense Agnes Martins. Na pintura “Innocent Happiness“ (1999), a subjetividade na tela recria um momento de calma e sutileza, mostra a generosidade da artista ao submeter luz e pouca cor para ambientar um cenário simplista, sem forma e leve. A profundidade da obra é o limite para repensar o quanto ainda você deseja seguir.
Felicidade Inocente (em tradução livre) mostra a interioridade e silêncio com o minimalismo a que poucos humanos conseguiram ou conseguirão chegar. Essa espécie de expressionista abstrata deu espaço neutro para a descoberta de um velho novo caminho: a mudança.
Me despeço de Nova York hoje para trazer a ideia de espaço neutro que decidi buscar. O ponta pé começa por dizer bye bye, palavra simples, mas que machuca toda vez que é pronunciada. Ainda mais para esse lugar que mostrou pela arte de viver que tempo é dinheiro, que respeito é obrigação e que liberdade é uma utopia.
O poder de ser o que eu gostaria de ser me é concedido. Sigo para um outro continente para explorar a liberdade com um olhar de quem muito em breve completará 39 anos imaginando que a proxima década será branca, preta, parda, mestiça, mulata, mameluca, cafuza, cabloca, indigena. Ou não será nada, como me disse um amigo.
Seguir em frente é o proposito. E esta é, para mim, a maior conquista dos últimos meses.
Fernando Henrique é jornalista e produtor cultural, mestre em Economia da Arte e em Projetos Culturais para Espaços Públicos pela Sorbonne, na França. É correspondente da CNN Brasil em Nova York
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