Fernando Henrique
Dupla Consciência
Viver ‘entre’ é agora um estado que me faz ganhar folêgo para saber qual lugar preciso alcançar para combater o regime imposto por vocês
Em 2000, a Associação Cultural Videobrasil reuniu pela primeira vez no Brasil artistas africanos na Mostra Africana de Arte Contemporânea. A exposição no SESC Pompéia, em São Paulo, trazia nomes como William Kentridge, Oladélé Ajiboyé Bamgboyé, Zwelethu Mthethwa, Kendell Geers, Sue Williamson, Fernando Alvim, Tracey Rose e Jean-Pierre Bekolo. Com obras inéditas, artistas acenderam os holofotes nesse grande continente chamado África.
A exposição levantou muitas dúvidas, não somente sobre o que era visto por ali, mas o que exatamente estavamos discutindo. Descontruir e criar desconforto era uma das premissas. Um mundo tão longe e tão perto inspirava a ideia de perceber as situações semelhantes no meu país; a oportunidade de questionar o inquestionavél era proposta visualmente. De forma especifica e muito bem fundamentada, a curadoria reuniu uma série de experiências em que a dor era quase um artefato para justificar o que cada um tinha a dizer e a mostrar.
Oladélé Bamgboyé, artista com quem pude trocar algumas palavras, usava a fotografia como ponto de partida em instalações digitais em vídeo que mostravam a exploração do corpo negro. Ele era visto como um objeto de intenso desejo reificado, um pacote de prazer mercantilizado.
“I Miss You”, instalação de Fernando Alvim, partia de um vídeo baseado em situação da vida real, dos anos de 1995 a 2000. Ao vivenciar esse momento lembro-me descobrir um outro espaço de incômodo em mim – entre taças de champagne, canapés e outros acepipes, discutíamos o que era aquele universo preto e cruel. Retratava uma realidade que, em anos, pouco mudou.
Há pouco, falávamos em ‘empoderamento’; agora ‘antirracistas’ é a palavra da moda
Muito perto dali, também projetadas, palavras que se liam no público (guerra, culpa, falso, assassinato, morto, vivo, contaminado, doente, monstro, fêmea, asiático, perdido, africano, tudo, animal, bonito, sensual, violento, negro, racista, lésbica, gay, louco, europeu, procurado, branco, nenhum, frágil, vulnerável, mentiroso, americano, hétero, encontrado, árabe, macho, nada, vulgar, vibrante, viciado, livre, nômade, acessível, ligado, outro). Ali despertei para a expressão tão usada pela minha familia, “um tapa com luva de pelica”. Apanhei com doçura.
Minha mémoria mais forte é a de Sue Williamson. “Can’t Forget, Can’t Remember” ainda me deixa o estômago embrulhado. Com uma peça interativa, o filme dá voz aos depoimentos coletados pela Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul. Vítimas indagam: “Você lembra o que fez comigo?” ou “O que a sua ação significou para você?”. A obra busca dar a rara oportunidade de entender causa e consequência. As duas perguntas não são sobre mim ou sobre você, mas como o tempo criou um caminho para decidir quem sou eu e quem é você — e quem está no topo na pirâmide do ódio.
Estes tempos serviram-me para repensar os últimos 20 anos desde que a mostra ocorreu. Uma analise se faz necessária para estudar as forças, fraquezas, oportunidades e ameaças desta nova era. No passado, pensei que não precisaria mais registrar as demandas que o racismo têm na sociedade. Existir ou estar vivo já significava cumprir o papel, eu acreditei. Meu sonho era o de poder comemorar por aqui o presente que a vida me deu: contar sobre a Mostra Africana de Arte Contemporânea. Eu era jovem. Eu flertava com um futuro melhor.
Todo esse tempo passou e a realidade desceu goela abaixo. O assassinato cruel de George Floyd nos Estados Unidos, todos os casos terriveis de agressões verbais e de racismo no mundo. Há pouco, falávamos em “empoderamento”; agora “antirracistas” é a palavra da moda. Neste momento, para mim, é sabido que nada vai mudar — quem deve fazer a mudança não o fará.
Uma prova importante disso é o texto da antropologa e historiadora Lilia Moritz Schwarcz publicado na Folha de S. Paulo em que critica e reverencia o novo clip de Beyoncé, na linha “morde” e “assobra”. A autora pretendia claramente explicar a uma mulher negra como a história deve ser contada de um ponto de vista — não de qualquer ponto de vista — de uma mulher branca. A internet não a perdou.
Uma errata publicada cinco dias depois (diferentemente do publicado em versão anterior, o coletivo correto para leões é alcateia, não matilha, que se aplica a cães, e a peça “Hamlet”, de William Shakespeare, pertence ao período elisabetano (1558-1603), não à era vitoriana (1837-1901)) pouco ratificou. A repercussão se deu pela maneira como a historiadora manifestou seu pensamento sobre o trabalho da diva pop.
A articulista pediu desculpas em suas redes sociais, como se isso resolvesse a questão. Um ponto é: depois que inventaram a desculpa, só os negros continuam levando tapa na cara. Esta dualidade de “dupla consciência” está no cerne da minha identidade e da diáspora. Viver “entre” é agora um estado que me faz ganhar folêgo para saber qual lugar preciso alcançar para combater o regime imposto por vocês.
Fernando Henrique é jornalista e produtor cultural, mestre em Economia da Arte e em Projetos Culturais para Espaços Públicos pela Sorbonne, na França. É correspondente da CNN Brasil em Nova York
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