69 poemas e alguns ensaios
Antologia erótica reúne textos e versos de 49 escritoras brasileiras, entre contemporâneas e nomes históricos, lançando um olhar de mais liberdade sobre a sexualidade feminina
POR QUE LER?
“Como um tigre enjaulado.” É assim que a crítica e tradutora Isadora Sinay define a forma como a maioria dos escritores e escritoras — dos marginais mais libertários aos best-sellers mais conservadores — tratam o desejo feminino em suas obras. “Ler literatura erótica, mesmo dentro do nosso projeto claramente feminista e orientado para procurar textos com protagonismo feminino, é encontrar um medo profundo da sexualidade feminina”, escreve ela em um dos textos que abrem a antologia “69 Poemas e Alguns Ensaios”.
O lançamento, fruto de uma parceria entre as editoras Jandaíra e Oficina Raquel e o coletivo Mulheres Que Escrevem, chega justamente para enfrentar esse medo e soltar o tigre. Além do ensaio de Sinay, quatro textos extraídos do zine “Mais Pornô, Por Favor!” (2016), de Adelaide Ivánova, e poemas de 49 autoras desnudam corpos e sexos sob um olhar — feminino e, por que não?, feminista — de liberdade.
Entre os nomes, figuram importantes vozes da literatura brasileira contemporânea como a própria Ivánova, a premiada Natália Borges Polesso e Estela Rosa, uma das fundadoras do Mulheres Que Escrevem. O livro traz também três poemas de Maria Firmina dos Reis (1822-1917), primeira escritora negra do Brasil e que abriu as portas para tantas outras mulheres que vieram depois. De quebra, belas ilustrações e colagens de Clara Zúñiga fazem companhia aos textos.
O Cavalo
“I look
at you and I would rather look at you than all the portraits in the world
except possibly for the Polish Rider” – Frank O’Hara
menino há dias tento desenrolar esse fio esse laço
desatar essa corda do meu pescoço e escrever
essas mal domadas linhas ofertá-las a ti menino e potro
surgido nesta estepe sem ferradura e assilvestrado
tirando os cowboys da sela e do sério: tu
menino poeta cavalo
e eu repetitiva nos poemas obcecada na vida
me embaralho feito cego em faroeste
ofereço-te meu açúcar meus torrões mais
pra pangaré ou mula que pra égua e relincho,
amolestada e paleolítica, ao sacudir do teu galope
e ao balanço da tua crina
em repouso do topo da tua cabeça à minha
há um côvado de distância já em galope gallardo
é inútil a antropometria pois da tua glande a meu chanfro
de equina não há côvado que nos meça yoctômetros
talvez aquela medida imaginária que nunca foi usada
pois mede lonjuras que não existem de tão mínimas
escrever um poema pra ti é domar um mustang
de santuário quando pra mim santo és tu menino
vishnu que me batizas de aminoácidos, precário
e matutino, potro poeta e menino a quem dedico horas
de trabalhos não forçados: pousar a fuça exausta
em tua soldra, levemente triste
de não poder ver tua cara enquanto gozas na minha
para depois admirar tuas quartelas bordo e casco,
tuas estrias no lombo de potro bem alimentado crescido
mais rápido que o previsto. pulaste as cercas do estábulo
para chegar, poeta e cavalo, nestas paragens onde
me encontras pronta de sela, esporas postas
para mais uma doma nesta sodoma aos avessos
sem cabresto nem gamarra deito-me devota em teu garrote
de puro-sangue belga e muda diante dos músculos
do teu costado aguardo brião e tala e entendo
o poema alemão que diz: toda a sorte que há
no mundo vem no lombo de um cavalo.
Adelaide Ivánova (PE)
Aproximações Amorosas
1. Tenho sonho, saudade e distância. Caminho paciente uma estrada traiçoeira. O vacilo prescreve. Revigoro o ritmo. Tenho pernas resistentes e um coração ansioso, mas inatacável. Tenho meta: chegar em casa. Não a casa dura, concreta demais; mas a casa amorosa, onde meu bem-querer te habita.
2. Quando a tua mão busca o justo espaço, o espaço posto, o espaço falta, quando a tua mão busca, espalma, quando a tua mão busca coluna, pele, quando a tua mão busca osso, a tua mão busca, digo, quando busca, a tua mão busca quando busca qualquer coisa no meu corpo, digo, quando ela busca não para encontrar, mas para seguir buscando, assim quando a tua mão busca em mim; é sempre nosso encontro.
3. Com quantos copos de armagnac liquefaz-se o amor entre duas mulheres?
4. Ao acordar, te chamo. Você: lenta. Dentro do sono. Profunda: você. Eu: superfície. Antemanhã. E te chamo naquela hora aquosa em que o peso do corpo é nulo. Te chamo na hora em que tua coxa cobre o lençol amassado, na hora que faz calor dentro (e tua coxa nua embaraça a cama). Te chamo. Você: úmida. Desenho: saliva sobre travesseiro. Ao acordar: vinco, visco, isca, fecho os olhos. Você: presença.
5. Bravura: a minha vida e a tua.
Natalia Borges Polesso (RS)
Semanário ou O Tempo da Delícia
folheio teus cabelos nesta manhã de segunda-feira
folheio teus cabelos pela manhã
e um sonho colado à corda de sete linhas mais
uma orelha
pendurada na língua a palavra
estremeço
meus olhos abertos no escuro
todas as páginas escritas começam a queimar
pelas beiradas
depois o centro
estremece
a cidade e seus chakras encobertos pela luz
um poema escapa
dos teus pelos
e eu não posso perdê-lo
fodam-se os livros
fodam-se os livros
e todas bibliotecas itinerantes
teu nome é incêndio
e morde
Geruza Zelnys (SP)
Ah! Não Posso
Se uma frase se pudesse
Do meu peito destacar;
Uma frase misteriosa
Como o gemido do mar,
Em noite erma, e saudosa,
De meigo, e doce luar.
Ah! se pudesse!… mas muda
Sou, por lei, que me impõe Deus!
Essa frase maga encerra,
Resume os afetos meus;
Exprime o gozo dos anjos,
Extremos puros dos céus.
Entretanto, ela é meu sonho,
Meu ideal inda é ela;
Menos a vida eu amara
Embora fosse ela bela.
Como rubro diamante,
Sob finíssima tela.
Se dizê-la é meu empenho,
Reprimi-la é meu dever:
Se se escapar dos meus lábios,
Oh! Deus, – fazei-me morrer!
Que eu pronunciando-a não posso
Mais sobre a terra viver.
Maria Firmina dos Reis (MA)
Das Mãos Dele
As mãos escuras do meu amado
Preenchem meus seios por todo lado
Como quem recolhe flores maduras
As mãos escuras do meu amado
Têm as palmas brancas
São quentes, acolhedoras
Preenchidas por dedos enormes
Ah
O meu amado e as suas mãos escuras
Conhecem cada centímetro do meu corpo
Escrutinam minhas cavernas
Anunciam-se entre as minhas pernas
Fazendo escorrer o meu mar
São escuras as mãos do meu amado
São belas
São ternas
São livres.
Cristiane Sobral (DF)
- 69 Poemas e Alguns Ensaios
- Várias Autoras
- Jandaíra e Oficina Raquel
- 144 páginas
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