Ando obcecada com nossa parte de dentro do corpo. Já era, sempre fui criança que olhava a agulha entrando, o ponto sendo dado. Chego até a pedir espelho ao dentista pra ver a hora que rasga. Sempre fui intrigadíssima com o atrás da pele do corpo. Mas sinto nojo de rato e barata, para que não pensem que sou fortona. Não há explicações, é apenas um fato: anatomia não me causa nervoso. Causa fascínio. Fico hipnotizada com a organização interna do corpo. Descobri páginas de Instagram e vídeos no YouTube de profissionais, como o de fisioterapia que me deixou viciada e que me explica num vídeo bem macro, bem intenso, como funciona nosso joelho. Um absurdo. Um filamentozinho, um filete, uma coisinha e você consegue se dobrar, se ajoelhar, dançar. Besteira. Ao mesmo tempo surreal.
Estou dentro de casa há quatro meses, preciso me mudar no final do mês — $im, a pandemia chegou ra$gando tudo. E agora, mais do que nunca, sendo obrigada a ficar dentro, a olhar para dentro, a resgatar todas as palavras, metáforas, referências com o interno, me vi vidrada com o verdadeiro dentro. Do corpo.
Não acho que poderia ser da área médica porque sou pessoa que se afeta muito, não que os profissionais não se afetem, mas percebo características mais de prontidão, de praticidade. Apesar de não ter nojo anatômico, não teria um estalo de tentar resolver nada, ficaria só ali delirando vendo a cor do sangue, essas coisas. Pessoas já se machucaram perto de mim e eu não fui apta a decretar nada, fiquei por perto só deslumbrada. Como a vez que meu irmão abriu a cabeça no mesmo lugar de anos atrás. Ou o outro irmão chegou após um tombo de bicicleta e dava pra ver o osso do joelho. Eu mesma, quando usava óculos e corri na fazenda da minha tia, não vi o arame farpado. O sol bateu no óculos, deu-se um clarão, deu-se a loucura na minha mente em continuar correndo (já era dada a viver sem saber o que se passava), e VRAU, o arame farpado rasgou minha camisa e uma area perto dos meu cotovelos. São minhas maiores cicatrizes, inclusive. Chorei até. Mais pelo susto. Mas ficava encantada com o rasgo: e se desse pra abrir mais, o que eu veria? E se não houvesse risco algum, e eu pudesse tirar a pele, como quem tira a roupa, e eu me olhasse no espelho? Eu tinha sete anos, e ainda não sabia que a pele era um órgão. Que descoberta foi saber.
Tudo ligado, tudo conectado. E que também seja tudo doado. O corpo é sagrado se há pulsão; se não há, não há motivos para enterrá-lo
Sabemos tão pouco sobre o corpo, a escola nos entope de alguns conhecimentos que mais precisamos decorar do que absorver de fato. Não sei se há de servir para algo, conhecimento é de fato muito particular e você pode simplesmente viver com, porém sem e sem alardes. Ou usá-lo no dia a dia; ou usá-lo como parte de processo criativo (mais meu caso). Ou ainda: do jeito que você quiser. No momento me vejo intrigada com a parede lateral da pelve. Tanto no meu livro, que é ilustrado, quanto no Google Imagens. Tudo funciona, tudo é ligado e conectado, quase mágico, quase mentira.
Descobri que temos apenas seis litros de sangue no corpo, achei tão pouco. Entendi mais umas mortes (cinematográficas) que eu achava que esbarravam na inverossimilhança, mas pelo visto não. É isso: três garrafas de coca-cola de dois litros. E, se sair muito, já era. Há uma foto fortíssima, com a qual até hoje sonho, penso nela, lembro dela em situações variadas. Um transplante de coração. O peito da pessoa está bem aberto, é como se a gente fosse um balde, um vaso. E nessa imagem não há coração, está oco, vazio, uma vermelhidão que nenhum partido político e nem coração desenhado por criança, consegue ter. Do lado de fora desse balde, desse vaso, desse nosso peito, eis: o coração. Íssimo.
Sou disléxica e até hoje confundo ventríloquos com ventrículos (tive que conferir enquanto escrevo). Bonito pensar que a função de bombear sangue para a circulação esbarra na arte de falar sem mexer os lábios, ainda assim causando uma voz do além. O coração com ventrículos fora do corpo me causou espanto e deslumbramento. Vejam alguma imagem real de coração. Os desenho que aprendemos a fazer são lindos e simbolizam muito, sabemos. Mas importante ver o coração de verdade em sua totalidade. Sei de casos de pessoas que transplantaram, e perderam ou desenvolveram algum gosto. Pai de um amigo começou a suar com outro cheiro. Quão estupendo é isso?
As mãos já são fenomenais para mim de qualquer maneira, por dentro não haveria de ser diferente. Sou tarada em mãos, observo as mãos de qualquer pessoa, parada ou em movimento. Descobrir uma imagem sem o cobertor da pele, o que há debaixo do lençol desse mecanismo absurdo que é manusear, foi uma viagem sem volta. Enquanto digito, olho pouco para o texto em si, sou rápida em datilografia, observo mais minhas mãos se movendo, obedecendo essa insanidade e obviedade corporal. Tudo ligado, tudo conectado. E que também seja tudo doado, importante frisar. O corpo é sagrado se há pulsão; se não há, não há motivos para enterrá-lo, cremá-lo, com alguma possibilidade em passar adiante algum orgão fundamental para o pulsar de outro corpo.
Preciso arrumar caixas e caixas da mudança. Antes disso, por que não ver imagens das secções transversais da perna? Não faz sentido, mas também faz muito. Tão lindo quanto a meia calça vinho que quero comprar. Dentro ou fora, elogio. Prezo, estimo, amo.
Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.