Por que o jogo “The Last Of Us Parte II” se tornou tão polarizado?
Ao questionar o heroísmo dos protagonistas e promover uma obra mais diversa, “The Last Of Us Parte II” se tornou alvo de campanha de ódio promovida pelos próprios fãs
*O texto contém spoilers de “The Last Of Us” e “The Last Of Us Parte II”
Uma história sobre ódio. É assim que Neil Druckmann, diretor do jogo, define “The Last Of Us Parte II”. Lançado no dia 19 de junho, o game é a continuação do premiado “The Last Of Us”, de 2013. Na sequência, acompanhamos Ellie — uma das protagonistas da primeira parte — em uma sanguinária busca por vingança em um mundo assolado por um apocalipse zumbi.
Após seu lançamento, ele rapidamente se tornou o centro de polêmicas que transbordaram o universo dos vídeo games. A reação ao jogo foi polarizada. O consenso da crítica especializada, e de boa parte dos fãs, é de que ele é excelente, mas houve uma parcela significativa da audiência que o odiou.
Esse é um dos primeiros jogos de grande orçamento que traz personagens LGBTQI não apenas em papéis secundários, mas no protagonismo da história
Druckmann já previra que alguns dos fãs da primeira parte não gostariam da sequência, mas sentia-se seguro com a direção que havia tomado. “Prefiro que as pessoas odeiem o jogo de maneira fervorosa do que apenas pensem ‘É, foi OK’.”
O que ele não esperava era que após o lançamento da parte II sua equipe fosse ser vítima de uma campanha de ódio na internet, chegando ao ponto de receber ameaças de morte via mensagens.
Além dos xingamentos, a produção também foi vítima de uma ação conhecida como review bomb, em que internautas se organizam para postar críticas negativas em massa a fim de alterar a nota geral de uma obra em sites especializados.
Mas qual foi o motivo para tamanha comoção? Entre vazamentos internos de pontos cruciais da história, uma cultura trabalhista abusiva dentro do estúdio, o incômodo de uma parcela dos fãs com a forte representação feminina e LGBTQI+ dentro do game e uma narrativa ousada, “The Last Of Us Parte II” se tornou palco de uma história sobre ódio que ultrapassou as fronteiras do PlayStation 4.
A jornada até a Parte II
O primeiro “The Last Of Us” se tornou uma referência de qualidade dentro do mundo dos vídeo games. Com mais de 20 milhões de cópias vendidas, o jogo se passa em uma América tomada por um apocalipse zumbi.
Em 2016, três anos depois do lançamento da primeira parte, uma sequência foi anunciada para delírio dos fãs. Entretanto, o percurso até “The Last Of Us Parte II” não foi tranquilo. O game foi adiado algumas vezes e a companhia que o produz, Naughty Dog, foi acusada de ter uma cultura trabalhista abusiva em seus estúdios.
O período de divulgação também enfrentou problemas. Além de um vazamento de pontos chaves da trama — incluindo a cena da morte de uma personagem importante —, um dos trailers virou alvo de polêmica.
No trecho, Ellie, nome central no jogo anterior, dá um beijo em Dina, sua nova namorada. A cena despertou a ira de uma parcela de jogadores, que se indignaram com a representação — supostamente forçada — de amor lésbico dentro da história.
Protagonismo LGBTQI+
Apesar das reclamações, o jogo foi celebrado por sua diversidade. Ellie é uma mulher lésbica e a protagonista. Ela é acompanhada por Dina, sua namorada bissexual — que também é judia.
O romance das duas é explorado durante a jogatina, mas sempre como um elemento adicional a trama principal. Há também um personagem trans — Lev, um menino que foge de um culto extremista no decorrer da trama.
“Esse é um dos primeiros jogos de grande orçamento que traz personagens LGBTQI não apenas em papéis secundários, mas no protagonismo da história”, diz Henrique Sampaio, jornalista especializado em vídeo games e co-fundador do site Overloadr.
Vídeo games foram direcionados para homens brancos cisgêneros de classe média durante décadas. Quando se quebra esse direcionamento a reação é muito forte
“O jogo normaliza uma expressão sexual que não é heteronormativa e mostra que isso é um traço da protagonista, não o que a define. A história não é sobre a sexualidade dela, porém o relacionamento que ela tem com a sua namorada é parte integral da história”, complementa Sampaio.
Para ele, não houve surpresa na reação violenta de uma parcela dos fãs. Segundo o jornalista, vídeo games foram direcionados para um público específico durante décadas — homens brancos cisgêneros de classe média — e quando um jogo desse porte quebra esse direcionamento e dialoga com um público mais amplo, a reação é sempre muito forte.
“A indústria está se diversificando. Ela passou a reconhecer que não existe numa bolha e que é um produto cultural muito forte, uma indústria relevante para a sociedade. Então ela se vê na responsabilidade de representar outras pessoas e dialogar com a sociedade e com a realidade. É um processo inevitável”, finaliza Sampaio.
Precisamos falar sobre Abby
Ao longo do jogo, a vingança de Ellie é dirigida a uma mulher — Abby. Extremamente musculosa, a antagonista foge do padrão feminino hollywoodiano. Isso fez com que boatos de que ela era uma personagem trans circulassem pela internet. Abby é cisgênero, mas parte dos fãs rapidamente encontrariam novos motivos para odiá-la
Durante as primeiras quinze horas, você joga como Ellie em uma caçada violenta a Abby. E após a morte de inúmeras pessoas de ambos os lados, as duas finalmente se encontram para um embate. O jogo então volta no tempo e muda a perspectiva — você passa a controlar Abby. E então pode conhecer a perspectiva de quem antes era considerado inimigo.
Ao sermos obrigados a compreender esse outro lado, nosso sentido de certo e errado fica abalado já que não há heroísmo ou vilania
A decisão desagradou alguns fãs, que se sentiram traídos e desconfortáveis na pele do antagonista. Para Carol Costa, editora-assistente e apresentadora do IGN Brasil, a Naughty Dog fez uma escolha ousada ao desconstruir os heróis de um público extremamente apaixonado e mostrar que toda história tem outro lado. “A Abby está ali justamente para causar incômodo. Somos obrigados a jogar com ela e entender o seu lado — mesmo que a contragosto.”
Costa entende que “The Last of Us Parte II” pergunta ao jogador quais foram as consequências das ações de Joel, protagonista da primeira parte que provoca a fúria de Abby. “Ao sermos obrigados a compreender esse outro lado, nosso sentido de certo e errado fica abalado já que não há heroísmo ou vilania. Por que um lado tem mais peso do que o outro? Ambos tiveram motivos, concordemos ou não com eles”.
Para Sampaio, o game é feito para deixar o jogador desconfortável. “É um jogo incômodo, mas pessoas imaturas estão direcionando esse incômodo para os desenvolvedores e partindo para a agressão”, afirma.
Olho por olho, dente por dente
Sampaio acredita que as críticas dos fãs são válidas, pois “The Last Of Us Parte II” é um jogo que merece discussões. Mas ele enxerga o ódio destilado por parte do público como uma consequência de um meio que está acostumado a narrativas simplórias e não discussões mais profundas.
“É uma falta de educação. Não só no sentido de que as pessoas estão sendo grosseiras, mas que elas não conseguem dialogar de maneira civilizada em relação aos temas do jogo”, complementa o jornalista.
Petições para que o final do jogo fosse mudado surgiram e alguns fãs optaram por ignorar a sequência, fingindo que ela jamais existiu. Entretanto, o game é um sucesso — mais de 4 milhões de cópias foram vendidas na primeira semana, um recorde do PlayStation 4.
“O game tenta chacoalhar o jogador para perceber que a violência e o ódio não tem um limite do tolerável, do certo, do aceitável — por mais que nosso juízo de valores funcione em cima daquilo que gostamos, com o qual nos identificamos”, finaliza Costa.
Ao contar uma narrativa sobre ódio, “The Last Of Us Parte II” ousou sair da zona de conforto da indústria e provou que existem outras histórias que merecem ser contadas dentro dos games. É uma pena que parte dos fãs esteja cega de ódio — elemento tão criticado pelo jogo.