Coluna da Isabelle Moreira Lima: O que é uma comida comum? — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

O que é uma comida comum?

Ler o livro de Neide Rigo faz pensar no prato nosso de cada dia, no jeito com que o preparamos e o que comemos, e as consequências de nossas escolhas

22 de Novembro de 2024

Neide Rigo é uma nutricionista, pesquisadora da alimentação, escritora e cronista. Mas é também um passarinho. Ela gosta tanto das descobertas que faz ao investigar o mundo vegetal que sai por aí espalhando as sementes das plantas brasileiras que encontra em sua pesquisa. Literal e metaforicamente.

O método da Rigo é meio engraçado. Basicamente, ela sai para caminhar e se distrai. E aí, de repente, seu olhar é capturado por algo que ela nunca viu antes, pode ser uma planta, um fruto, uma flor, uma raiz e até um coquinho. Ela posta uma foto no Instagram, onde formou uma comunidade atenta, pergunta se alguém conhece aquela espécie e começa seu mergulho para aprender tudo o que puder sobre esse novo ingrediente. Quem a acompanha por lá sabe do que eu estou falando.

Mas talvez o que a atrai seja algo que ela conhece. Se dirige, então, quase como se para cumprimentar — já assisti a algo assim e posso provar. Quem passa por perto se interessa, pergunta, e ela ensina. Assim vai, aos poucos, disseminando a palavra do vegetal nativo brasileiro também de forma offline, seja dessa maneira espontânea ou nos grupos que forma para “caçar PANCs”, as plantas alimentícias não convencionais, uma espécie de forrageio na City Lapa, bairro onde vive na zona oeste de São Paulo.

Seu trabalho de pesquisa é também divulgado nas oficinas e consultorias que ela faz em diferentes partes do país. Nessas viagens, sua pesquisa floresce, quando entra em contato com outros biomas brasileiros e também com as culturas locais, mais uma vez, aprendendo e ensinando. Mas como consegue chegar na região Norte, por exemplo, e não dar uma de sabichona com as cozinheiras do próprio lugar, que devem conhecer mais aqueles ingredientes do que ela? A resposta está em sua curiosidade. Ela primeiro ouve, aprende sobre os produtos com os locais, cozinha junto, para só depois pensar em novas aplicações e em como aquilo pode entrar no cardápio escolar.

Esse é um jeito, aliás, de fazer com que esses ingredientes tão brasileiros, que deveriam fazer parte do dia a dia, se tornem enfim populares, e que sejam a nossa “comida comum”. Foi esse o título com que Rigo batizou o livro que lançou no último mês pela editora Ubu. Essa comida que ela ama, descobre, pesquisa, explora, cultiva no quintal de casa e compartilha com quem está interessado, é comum a todos nós porque é brasileira; mas deveria ser comum também, idealmente, por fazer parte da alimentação do dia a dia.

Um jeito simples de sermos mais respeitosos com o meio ambiente e quebrarmos a corrente de comer o que o mercado manda é deixar o nosso prato mais variado

Rigo é séria sobre isso. Diz que, se todos nós conseguíssemos cultivar PANCs, essas plantas brasileiras que muitas vezes brotam do nada nas ruas, talvez chegássemos a uma soberania alimentar. Ela estimula e encoraja a todos que mergulhem nesse mundo, que comecem a frequentar as feiras livres para aprender mais sobre nossos ingredientes nativos, que prefiram o produtor de agricultura familiar, que produz de forma mais sustentável e ecológica. Quem vai só ao supermercado acaba aceitando as regras do mercado que impõe gostos pautados pela agricultura de larga extensão e o capitalismo.

Ela me fez pensar. Um jeito simples de sermos mais respeitosos com o meio ambiente e começarmos a quebrar a corrente de comer o que o mercado manda é deixar o nosso prato mais variado. Apostar na sazonalidade, na biodiversidade, pesquisar o que é de fato brasileiro e incluir esses vegetais em nossa dieta. Preferir, como ela sugere, a agricultura familiar. Quem aí frequenta feiras livres e os centros de abastecimento das cidades?

E quanto aos autores estrangeiros de receitas? Tenho meus favoritos e já lutei muito para conseguir seguir suas receitas à risca. Depois de ouvir e ler Neide Rigo, pensei: por quê? Elas, muitas vezes, saem caras por aqui, com ingredientes difíceis de achar e, quando por aqui estão, a que preço! Muitas vezes, há primas brasileiras para seus ingredientes, como é o caso dessa lentilha Le Puy, que poderia muito bem ser substituída por algum feijão brasileiro, como o manteiguinha, por exemplo.

Ler “Comida Comum” (Ubu, 2024) faz pensar no prato nosso de cada dia, no jeito com que o preparamos e o que comemos, e as consequências de nossas escolhas. Virou clichê dizer que comer é um ato político e, me perdoem por aqui, mas este é um livro político. E é um livro de memórias também, que começa com uma infância na periferia de São Paulo, com roça, com a sabedoria dos vizinhos que chegaram do Nordeste e do Norte, experiências banais que foram aguçando seu apetite. É capaz de emocionar com essas lembranças, com as pontes que sementes, frutos e plantas podem traçar e as amizades que podem criar. Afinal, Neide Rigo é um desses passarinhos que espalha sementes, mas também conhecimento. Quem reconhece a grandiosidade desse trabalho não tem outra resposta senão a gratidão, um ingrediente maravilhoso para formar laços.

Produto

  • Comida Comum
  • Neide Rigo
  • Editora Ubu
  • 192 páginas

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Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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