Trecho de Livro: Neca, de Amara Moira — Gama Revista

Trecho de livro

Neca

Primeiro livro do gênero escrito pela professora de literatura e ativista trans acompanha o longo monólogo de uma profissional do amor

Leonardo Neiva 15 de Novembro de 2024

Você é fluente em bajubá/pajubá? Mesmo que a resposta seja negativa, isso não deve te impedir de ler o romance de estreia da autora Amara Moira, “Neca” (Companhia das Letras, 2024). Totalmente escrito na linguagem exclusiva usada por muitos membros da comunidade LGBTQIA+, o livro é composto pelo longo monólogo de uma travesti que reencontra um antigo amor, anos mais jovem, que, assim como ela, também começa a trabalhar nas ruas.

Por vezes é fácil — e até recomendável — se perder nos termos e expressões que dão um caráter ainda mais visual para palavras bem conhecidas. No dialeto, homem vira ocó e mulher amapô, cabelo ou peruca é picumã, neca é pênis e necão dá para adivinhar pelo contexto.

Com muito humor e doses cavalares de realidade, a narrativa acompanha as aventuras de uma profissional do amor caracterizadas pelo erotismo e a desinibição. Ao mesmo tempo em que vai desfiando memórias e conselhos num depoimento fictício à autora, a personagem reconta suas aventuras como garota de programa do Brasil à Europa e as descobertas no seu trabalho pelas ruas, descrevendo a mulher que foi enquanto segue sonhando com a que poderia ter sido.

Logo no seu primeiro romance, a escritora, professora de literatura e ativista Amara Moira, autora de “E Se Eu Fosse Puta” (N-1 Edições, 2016), conta uma história que ainda reúne literatura clássica, amor e sexo — grandes nomes do cânone literário se misturam às lembranças da protagonista com seu antigo amor — de forma sempre instigante, mesmo quando não entendemos tudo que está sendo dito. O monólogo, aliás, é uma versão expandida de um conto de Moira publicado na antologia “A Resistência dos Vaga-Lumes” (Nós, 2019), que reúne escritos de autores LGBTQIA+.


Produto de exportação não é só futebol, nananão, acho que travesti é até mais. Também, belíssimas. É abrir o jornal na Itália e cê já vê il viados na primeira página. Ó lá a palavra na boca do povo, deve tá até no dicionário. E o pior (quer dizer, melhor, por que eu amo), se um bofe lá diz que tá de casinho com uma brasiliana, na hora, na lata, ma é transessuale?, perguntam. Falou “brasileira” na Itália, rá, já imaginam que é mona. E, se for, eles não têm vergonha, não. A gata conhece a família, janta fora, anda de mão dada, o retetê que toda travesti sonha. Ainda falam qüesta é la mia dona pra quem quiser ouvir, viu? Tudo homem hétero, homão que nunca se envolveu com gay, bicha.

E tem mais. Lá cê pode ser nada mapozada, zero, a voz grossa, o xuxuzão berrando, mas tá de picu, vestidinho, botou um batom, pronto, é lei pra lá, lei pra cá, ali ela é lei. Quanto mais necão, mais lei, aliás. Não fosse um bando de vicioso, tudo querendo necão e sem guanto, era o paraíso. Oras, na Itália, o babadinho reina. Pior que aqui? E como! Pensa cona pagando em euro, aí cada pai branco ruivo necudo com sardinhas pedindo com jeitinho senza, a bicha doida pra engravidar, fora o padê babado, puro, não esse pó de gesso igual tem aqui. Um descuido e cê já tá com a tia, todo dia colocada, taba pra dormir, padê pra levantar da cama. Bicha, ou eu voltava da Europa ou era baubau. Dava pra mim mais não, voltei.

Produto de exportação não é só futebol, nananão, acho que travesti é até mais

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Se lá eu fazia sem o quê? Pegê? Passada, mona, a senhora quer me matar, né? Pele na pele é tia, faço a recheada não. Hoje nem namorado, pior raça que tem. Os ocós agora adoram tudo sem plástico, dão o truque, insistem — mas eu te amo! —, e, se você não topa, ainda tem que checar sempre que escapole a neca, senão eles tiram o capuz e cê só cata quando já tá dentro o recheio. Ó o problema de gostar de ocó. E aí é ficar pê da vida, esse é com certeza pê, esfregar a fuça deles no asfalto e correr atrás de exame e jujuba no hospital.

Se a bicha deixa no pelo, oras, a escolha é dela, o edi e a neca é de quem? Então, não julgo. Mas não deixa de ser uó, ocó que não sabe o que quer e começa o nhenhenhém logo que diza a cláudia. Aí se arrepende, chora, lembra dos filhos, a esposa em casa — ai! não pode ser, que foi que eu fiz? —, pergunta se cê tá limpa, fez teste quando — mas cê jura? Cê jura. E o que eu mais canso de ouvir é — tô limpo, gata, sério, primeira vez que eu saio com travesti. Pra riba de moá, viado, se manca! É como se, só por ser travesti, a gente já tivesse e o bonito nunca.

Gente podre. Primeira vez, primeira vez… Pior quando o lixo esquece e, na segunda ou terceira vez que te vê, vem com esse equê, né? Aí junta o que quer desconto porque acha que tem necão (dezessete é necão, mona? Fala pra eles) ou porque acha que te trata bem. Tá boa! Ivona ainda dá pra ter mais controle, só falar “não!” e fazer aquela cara que elas morrem de medo (morrem, mas voltam sempre! hahaha). Adoro gongar maricona. Pior, tem umas que engana, até parece ocó, malão e tudo, aí cê vai na pira dela te tchacatchá, já arrebitando o edi, mas é piscar e, Jesus, ela atacou sua neca. Vontade de dar na cara dessas sebosas.

Que criança não quer ser bombeira, bicha? E então vira travesti e vai ter, sim, fogo pra ela apagar, pencas, mas não aquele que ela imaginava

Teve uma vez, aquela necona odara, Amara do céu, que queria só dá. Que dá o quê, ô! Vira esse edi pra lá, vem cá com essa necona agora. Atórom! Ôxi, ôxi, misericórdia, a cona bibíssima, a neca dela duríssima, queria dá, deu, mas não sai sem me comer, eu disse. Foi uó achar posição que entrasse, não tinha como, como que não? Glória e perdição desse edi, aleluia! Dei o nome. Desespero é o nome. Foi-se o tempo em que apareciam aqueles bebezinhos superativos, hoje tudo maricona larga. Argh! Bofinho querendo fazer a garota. Marombeiro então, fico bege. Perderam a vergonha, já chegam e a primeira coisa é perguntar o dote. E é podre pra minha carreira, porque a minha neca nem dura, dura ela fica.

Carreira, carreira de puta, se for. A gente sonha tanta coisa, tanta, quer ser astronauta, cientista, bombeira, que criança não quer ser bombeira, bicha? E então vira travesti e vai ter, sim, fogo pra ela apagar, pencas, mas não aquele que ela imaginava. Daí, em vez de pilotar o caminhãozão vermelho uen-uon-uen-uon, apontando a mangueirona, xuááá, prum prédio em chamas, quenda a heroína aqui ralando, batalhando pra apagar o fogaréu no édi dessas cacuras. E não fosse a gente, ai, ai… O casamento delas, conta, quantos ainda não tão de pé pelo trabalho aqui das bonecas, hein? Fica a questã. As bonitas vêm cá, sentam até cansar, gozam e saem renovadas, direto pros braços das queridinhas mapôs. Só cosi pra aturarem a esposa em casa. E vice-versa, verdade. Pior. Com esse povo tudo dizado do ori, a gente virou pilar da sociedade, a própria sustentação. O Brasil, na minha opinião, só não empaçoca de vez por causa nossa. Não tem remédio, droga, psicóloga que faz o que a gente faz, não. E pode escrever: pelos serviços prestados, um dia vai ter estátua pras travestis. Duvida? Questão de tempo, ainda mais agora que tem mona até deputada. Quer dizer, deputrava. Vrá! O deboche das deusas. Pois você aguarde.

Pelos serviços prestados, um dia vai ter estátua pras travestis. Duvida? Questão de tempo, ainda mais agora que tem mona até deputada

Produto

  • Neca
  • Amara Moira
  • Companhia das Letras
  • 120 páginas

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