Deixa acontecer naturalmente
Conheça a turma do vinho natural, aqueles produzidos com pouquíssima intervenção
Depois da onda da cerveja artesanal, o vinho natural tem sua era de ouro. Se o mundo do vinho parece velho, sisudo, complicadíssimo, o do natural é jovem, descolado e livre, quase como se tudo fosse permitido – o que é sua delícia, mas também sua dor, uma vez que nessa roda entram alguns produtos com defeito. Esse tipo de vinho é produzido de forma artesanal, com a mínima intervenção possível, o que quer dizer que não há correção de rota ou adição de químicos caso algo saia do programado durante o processo. Isso faz com que a bebida seja autêntica, mas pode explicar também eventuais defeitos.
Quem advoga por essa causa tem em comum certo espírito hippie, de amor à terra, e defende que a bebida traz mais conexão com o terroir. O movimento, hoje fortíssimo na Europa e entre millennials e modernos nos Estados Unidos, começou de maneira lenta e pontual no Brasil nos anos 2000 apenas entre produtores e sommeliers. Hoje, é tendência e a maior aposta do mundo do vinho para atrair o público mais jovem – um desafio recorrente neste mercado.
Mas há ainda um grande entrave para sua difusão: o preço. Como a produção é artesanal e usa uvas cultivadas sem defensivos agrícolas (o que ocasiona mais perda), o vinho natural acaba sendo um produto mais caro, tanto os importados quanto os nacionais.
Conheça aqui alguns dos profissionais que levantam a bandeira dos naturais no país.
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Lis Cereja,
Se a turma do vinho natural fosse Canudos, ela seria Antonio Conselheiro
Foi ela quem começou a “catequização” dos amantes dessa vertente do vinho há mais de dez anos e hoje é a maior expoente e influenciadora da bebida feita sem muita intervenção ou adição de produtos químicos do Brasil. Ativista aguerrida, ela prega no Instagram e num blog; seu QG é o restaurante Enoteca Saint VinSaint, onde mantém uma programação de cursos e degustações; e há sete anos realiza a feira Naturebas, que neste ano, por conta da ordem de isolamento social, será realizada em novembro. Na sua última edição reuniu 110 produtores de vinhos de 60 países e teve seus ingressos esgotados. O que pouca gente sabe é que Lis é formada em nutrição, mas logo se voltou à gastronomia e se apaixonou pelos vinhos.
Seu primeiro emprego foi como sommelière de uma multinacional chilena de vinhos convencionais – dava palestras, guiava degustações, e sentia terríveis dores de cabeça. Até ao fim de um dia de degustações em uma feira, provou uma linha de Champagnes biodinâmicos e se apaixonou. “Eles não me ‘agrediram’. E eu achei muito estranho, porque na época eu não entendia que havia vinhos mais ou menos saudáveis ou equilibrados. A reposta física no meu corpo foi muito clara”, conta. Lis largou o emprego, mergulhou nos estudos sobre agricultura biodinâmica e resolveu abrir uma pequena importadora.
No começo a sorte não estava a seu lado: perdeu dois contêineres cheios de vinho nas enchentes de Itajaí, por onde eles chegaram. “O que foi um desastre por um lado, por outro me forçou a trabalhar com produto de mercado interno, tanto brasileiro quanto de outras importadoras. O que era para ser um winebar de importadora, acabou virando um restaurante. Sempre gostei muito de cozinhar, foi meio inevitável”, conta sobre o começo da Enoteca Saint Vin Saint.
Hoje, o local é uma referência, uma espécie de Meca dos naturebas em São Paulo. Mas em 2008, quando a casa foi aberta, Lis era tratada como louca por todo o mercado que desconhecia os vinhos naturais e olhava para tudo relativo a esse universo com desconfiança. “Foram anos no ostracismo, cheguei até a ser tirada das listas de convidados de eventos”, lembra. Nesses primeiros anos difíceis, Lis viveu uma sucessão de fechamentos anuais no vermelho, até que em 2015 ela se equilibrou. Hoje, Lis é uma representante do vinho natural em São Paulo e no Brasil. “Tenho o maior orgulho de levantar essa bandeira e, se dizem que abraço árvore hoje, eu concordo.”
Durante o período de quarentena, com o restaurante fechado, a Enoteca está fazendo delivery de vinho, de itens de mercearia e cestas de produtos orgânicos semanalmente. Lis deve lançar em breve ainda o Criado Solto, uma plataforma online de informação e manifestos sobre sustentabilidade e reconexão com a terra.
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Bruno Bertoli,
Um estudante de direito internacional que se descobriu sommelier
Em poucos anos, Bruno Bertoli transformou seu pequeno bar Beverino em uma espécie de consulado do vinho natural no centro de São Paulo. Lá ele serve cerca de dez rótulos em taça todos os dias e é capaz de dar uma aula ao cliente mais indagador — mas sabe respeitar o espaço de quem preferir ficar na miúda, que fique claro. Bertoli, assim como Lis, é um fervoroso defensor do vinho natural e não quer nem ouvir falar em consumir rótulos “industriais”, como a turma chama vinhos feitos com leveduras adicionadas e outros “pecados”.
Sua relação com o vinho nasceu na Itália, para onde mudou aos 19 para estudar direito internacional. Conseguiu um bico na Osteria Della Mal’Ombra, uma pequena enoteca superespecializada em vinhos naturais em Trento. Ali, Bertoli entendeu que era o caso de mudar de carreira e de pregar a palavra dos naturais. De volta ao Brasil, veio a São Paulo em 2016 e fez a carta do restaurante Capivara, que serve pratos à base de frutos do mar feitos com produtos fresquíssimos e que ganhou uma lista e vinhos superalternativa. Em 2018, abriu seu bar.
Hoje a única coisa que o irrita no vinho natural é o preço. “Há um perfil político, de menos formalidade e acessibilidade, que não é replicada no Brasil. Me incomoda pensar que aqui, apenas uma elite pode consumir”, afirma sobre os rótulos que chegam da Europa a R$ 300. Uma tática que adotou foi a de comprar uvas para produtores brasileiros com a garantia de ter descontos nas garrafas feitas com elas. “Quero ter taças a R$ 12, garrafas abaixo dos R$ 75.”
Enquanto o restaurante está fechado na quarentena, Bruno montou um esquema de delivery de comida e vinhos com cardápios divulgados no Instagram.
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©Reprodução Instagram Analu Torres,
Uma professora de francês que virou a grande anfitriã da turma natureba
Foi o amor que levou Analu Torres ao vinho natural. Ela dava aulas de francês em restaurantes e já tinha certa familiaridade com o vinho (já havia feito cursos na Associação Brasileira de Sommeliers) quando, há 13 anos em uma degustação, conheceu o marido, Xavier Meney, um agente de exportação francês nascido em uma família produtora da Borgonha. Um autodeclarado membro do movimento de resistência de preservação do terroir – como alguns dos entusiastas franceses denominam a corrente do vinho natural, porque com menos aditivos industriais a bebida fica com o sabor “real da fruta”, do que “a terra dá” –, Meney mergulhou com Analu no mundo do vinho orgânico, biodinâmico e natural.
Os dois resolveram abrir a casa onde moravam para eventos pontuais e os dois acabaram por transformar-se em anfitriões de diferentes eventos ligados a esse universo em São Paulo. Pouco depois, essa agenda foi transferida para um jardim simpático na Vila Madalena, batizado de Jardim dos Vinhos Vivos, que faz as vezes de escola de degustação e de francês (afinal Analu continua sendo a professora de francês favorita de muitos sommeliers e importadoras). A casa é ainda uma agência de viagens (os dois organizam visitas a produtores na França) e um lugar para encontrar pessoas que se apaixonaram pelo vinho natural, onde há sempre bebida e comida – Analu também é cozinheira de mão cheia. Ela conta que quando abriram o jardim, há três anos, os dois se contentavam com vinhos orgânicos e biodinâmicos. Mas o mercado mudou tanto e tão rápido – com mais adeptos e mais importação de rótulos feitos com pouca intervenção – que seu foco e sua oferta foram ficando cada vez mais próximos do natural.
Diferentemente dos outros lugares dedicados à bebida de São Paulo, as degustações do Jardim são sempre às cegas – e, na quarentena, ela tem mantido a agenda de provas online, em parceria com a importadora De la Croix. Analu afirma que é um jeito de evitar que se formem mais “bebedores de rótulos”, como já ocorre com os amantes dos vinhos de Bordeaux e da Borgonha. “Os vinhos muito bons, como geralmente têm uma produção mínima, acabam sendo muito disputados e supervalorizados, ficam caros e entram em uma espécie de mercado paralelo que não condiz com o que era quando saiu do produtor”, explica. E tem outro lado: “É excelente para ver os defeitos também. Não aceitamos os defeitos gritantes de um vinho só porque ele é natural.” Temporariamente fechado, o Jardim reabre em novo endereço em breve.
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©Reprodução Instagram Luís Henrique Zanini,
Graças a uma epifania, esse enólogo fez o laranja mais celebrado do Brasil
Um dos enólogos brasileiros mais respeitados por seus rótulos naturais, que vende sob a etiqueta Era dos Ventos, fez seu vinho mais festejado meio sem querer. Luís Henrique Zanini ainda era estudante quando, junto a colegas de faculdade, deixou que a Peverella, uma uva muito utilizada pelos imigrantes italianos mas há muito esquecida, fermentasse espontaneamente. “Foi uma epifania”, ele diz sobre o processo que dispensou leveduras selecionadas ou qualquer outro aditivo. “A gente nem tinha ouvido falar em Gravner [italiano mestre dos vinhos laranja], não se falava em vinho natural. Nós deixamos as cascas para ver no que dava”, conta sobre como atingiu o primeiro vinho laranja – produzido com uvas brancas que ficam em contato com as peles por mais tempo e assim adquirem mais cor e estrutura. Esse Peverella foi o embrião do projeto Era dos Ventos, que faz apenas vinhos naturais desde 2007. “Tem gente que acha que é só pegar qualquer uva e jogar lá. São métodos menos intervencionistas, mas existe intervenção. O fato de colher a uva e colocar em um lagar já é uma intervenção. É um vinho natural, mas tem que ser agradável”, afirma. Essa visão do que deve ser um vinho natural fez de Zanini um dos enólogos mais reconhecidos. Ao mesmo tempo, da turma, talvez ele seja o menos radical, ao participar de outros projetos com vinhos mais comerciais – é autor dos vinhos da Vallontano. Ainda assim, é um dos representantes no vinho natural no Brasil e já chegou a levar seus rótulos mais alternativos a feiras nos Estados Unidos.
Para não perder as uvas perfeitas de uma safra histórica neste ano, Zanini montou um esquema revezamento entre enólogos e outros trabalhadores da adega durante o período de trasfegas (quando o vinho sai dos tanques de fermentação para outros recipientes, sejam garrafas ou barricas). “Com o coronavírus, nos voltamos para dentro de nós mesmos, questionamos muitas coisas. O motivo dessa pausa é péssimo, há gente sofrendo por todo lado, mas é um bom momento de reflexão, no meu caso inclusive sobre o que o vinho representa para a minha vida”, afirma. Ele tem participado de lives onde guia degustações para os espectadores.
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©Reprodução Instagram Marina Santos,
Foi o paladar cansado que a transformou em uma das principais enólogas do movimento natural
Considerada pela crítica especializada uma das principais produtoras de vinho natural no Brasil, Marina Santos, da Vinha Unna, começou a se interessar por vinho como consumidora. Nascida no Rio Grande do Sul e formada em turismo, ela tinha o hábito de beber vinho no jantar com o marido, exímio cozinheiro. O paladar foi evoluindo e os vinhos que antes a satisfaziam acabaram ficando tediosos – sentia-se cansada de tanta mesmice. Ao mesmo tempo, ela descobriu que havia um novo mundo inteiro a ser explorado, o dos vinhos orgânicos e biodinâmicos. A medida que mergulhava nesses rótulos, crescia a paixão pela bebida, o que a levou a estudar enologia.
Mas assim como o seu paladar se frustrou com os vinhos comerciais, ela também se chocou com os processos industriais de fabricação da bebida, sobretudo por conta do tipo de correção e dos produtos químicos que são adicionados em diferentes estágios da produção. Aquilo abriu seus olhos para o tipo de vinho que queria fazer: voltou-se aos métodos ancestrais e às uvas mais limpas. Sua primeira safra, 200 garrafas de três rótulos, foi vendida em um único dia, na feira Naturebas de 2014.
Hoje, cinco anos depois, segue a mesma filosofia, vinhos naturais feitos com uvas biodinâmicas, e virou grande advogada da causa. “É um vinho mais digesto, tem mais nuance, mais camadas, há um grupo cada vez maior de apreciadores. Queremos saber hoje a origem de tudo, o que vestimos, o comemos e o que bebemos”, afirma. Mas encontrar um vinho de sua Vinha Unna não é exatamente fácil. São artigos preciosos em São Paulo, presentes em menos de dez restaurantes da cidade. Isso porque Marina, bem como outros pequenos produtores do país, lida com limitações legais ao ser enquadrada como produtora colonial, categoria que reúne pequenos produtores do sul com uma série de restrições comerciais. “É uma legislação muito excludente. Não consigo vender nem para pessoa física de fora da minha cidade. Se eu for me encaixar no vinho normal, preciso construir uma adega do tamanho da Miolo (uma das maiores do país)”, afirma. Mas isso não a impede de ter projetos ousados. Ela vendeu vai transferir seus vinhedos e outras plantações que totalizam 245 espécies para cerca de 1,5 km de distância, onde vai funcionar a nova fase da Vinha Unna, e vai ser mudar para o Jura, região francesa que é a meca do vinho natural para iniciar um novo projeto. “Vou fazer as duas safras anualmente, uma vez que elas acontecem em momentos diferentes do ano”, conta.
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©Reprodução Instagram Daniel Lopes,
Um drinque para consolar uma decepção levou um estudante a produzir vinhos naturais no Sul do Brasil
Foi na França que Daniel Lopes, produtor da Vinhas do Tempo, teve seu primeiro questionamento sobre o vinho. Ele fazia um mestrado em wine business, com aulas de agricultura e de enologia, quando se deu conta de que todos os atributos da bebida poderiam ser modificados (ou construídos) com diferentes intervenções durante seu processo de produção. Foi um balde de água fria tão grande que sentiu que precisava de um drinque. Foi a um bar com um amigo e pediu a sugestão do dia em taça: um vinho natural feito no Loire, de cor rosa-chiclete e teor alcoólico de 8%. “Aquele vinho deu um clique na minha cabeça. Ele era completamente diferente do que eu achava que deveria ser um vinho, mas era muito verdadeiro. Foi um caminho sem volta”, conta Lopes, que por motivos macroeconômicos (viu o euro subir a quase R$ 6) desistiu de ser importador e virou produtor com as uvas que compra de Encruzilhada do Sul (RS). Para ele, o vinho natural tem três pilares fundamentais: a autenticidade e a fidelidade ao terroir; o fato de ser livre de agrotóxicos (“não quero tomar veneno nem usar veneno no quintal da minha casa”, afirma); e o paladar mais fresco e diferente, em que há mais variação de acordo com cada safra. “A gente engarrafa o que a terra nos dá.”