Gente Ultraprocessada
Em experimento à la “Super Size Me”, médico britânico Chris van Tulleken documenta em livro os efeitos dos ultraprocessados na própria pele — ou estômago
Por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-las? A frase que serve de subtítulo para o livro “Gente Ultraprocessada” (Elefante, 2024) está também no cerne da investigação que levou o autor e médico infectologista britânico Chris van Tulleken a arriscar a própria saúde em prol do bem comum. Num experimento à la “Super Size Me” (2004) — documentário em que o diretor Morgan Spurlock se propunha a passar um mês se alimentando apenas à base de McDonald’s —, Tulleken decidiu restringir sua dieta a alimentos ultraprocessados ao longo de semanas. O objetivo: provar que essas supostas comidas, que no livro ganham a sigla AUPs, não poderiam sozinhas ser responsáveis pela explosão global nos índices de doenças como obesidade.
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O problema maior é que, de certa forma, todos nós realizamos sem perceber um experimento semelhante todos os dias. Afinal, os ultraprocessados se traduzem naquele refrigerante que você toma junto com as refeições, no salgadinho ou biscoito recheado que devora no lanche da tarde ou ainda nos nuggets e no macarrão instantâneo que prepara para comer correndo entre uma tarefa e outra. Os 80% de alimentos como esses que passaram a integrar a alimentação de Tulleken, na verdade, estão bem próximos da dieta normal de grande parte da população estadunidense e britânica.
A ideia para o projeto surgiu do artigo de um brasileiro, o epidemiologista e pesquisador Carlos Augusto Monteiro, primeiro a definir esses alimentos altamente industrializados como ultraprocessados. A criação de produtos como esses é uma decisão puramente comercial: por meio de transformações químicas, eles subvertem os mecanismos de alimentos naturais, que costumam sinalizar quando devemos parar de comer. Ou seja, passamos a comer muito mais e de fontes pouquíssimo saudáveis.
“Processos e ingredientes usados para fabricar alimentos ultraprocessados são projetados para criar produtos altamente rentáveis, convenientes e hiperpalatáveis, responsáveis por suplantar pratos e refeições preparados na hora”, foi como Monteiro definiu, no artigo que hoje orienta as políticas de saúde pública alimentar no Brasil. Não chega a ser spoiler dizer que o autor britânico falhou em sua tese inicial. Mas Tulleken não descarta consumirmos os AUPs enquanto aprendemos mais sobre eles, como forma de sentir da forma mais próxima possível os malefícios que causam. “Nos arriscamos nesse experimento enquanto os benefícios ficam nas mãos dos donos das empresas que produzem AUPs, e os resultados são amplamente escondidos de nós — exceto os efeitos em nossa saúde”, escreve no livro, que tem tradução de Érika Nogueira Vieira.
Prefiro comer cinco tigelas de Coco Pops: a descoberta dos AUPs
Exatamente sete dias antes de o sorvete de Lyra não derreter, eu tinha começado minha dieta de AUPs com um café da manhã de Coco Pops.
“É para mim?”, perguntou Lyra.
“Não”, eu disse. Ela estava comendo mingau.
“Quero o cereal do Mickey Mouse!”, disse Lyra, apontando para o macaco Coco.
Eu havia presumido que, por nunca ter provado Coco Pops, ela não se interessaria de forma nenhuma pelo cereal. Mas a Kellogg’s a deixara viciada antes mesmo da primeira colherada. Aquele era um produto criado tendo em mente uma criança de três anos. Mais uma vez eu disse não, então ela desabou no chão chorando e gritando com raiva, o que trouxe Sasha para a cozinha (nos braços de Dinah).
Eu tinha feito mingau para Lyra porque meus instintos me disseram que Coco Pops não era um café da manhã saudável para uma criança de três anos, ainda que tudo na embalagem parecesse indicar o contrário. A caixa estava coberta de informações nutricionais reconfortantes: “50% da sua vitamina D diária”, “30% menos açúcar”. No Reino Unido, usamos “semáforos” para indicar se uma comida é saudável. A informação nutricional do Coco Pops apresentava dois valores verdes (para gordura e gorduras saturadas) e dois amarelos (para sal e açúcar). E havia uma ilustração de macaco na caixa, sugerindo que o cereal não só era seguro para crianças, como deliberadamente destinado a elas. Talvez fosse OK.
De qualquer forma, minhas dúvidas persistentes eram irrelevantes. Enquanto eu levava tudo isso em consideração, Lyra tinha engatinhado por debaixo da mesa, enchido sua tigela e começado a comer grandes punhados de Coco Pops secos, com os olhos arregalados e em êxtase. Derrotado, servi o leite e li os ingredientes: arroz, xarope de glicose, açúcar, cacau em pó com gordura reduzida, massa de cacau, sal, extrato de malte de cevada, aromatizantes.
O Coco Pops atende à definição de AUP por causa do xarope de glicose, da massa de cacau e dos aromatizantes. Um triunfo espetacular da engenharia.
A Kellogg’s a deixara viciada antes mesmo da primeira colherada. Aquele era um produto criado tendo em mente uma criança de três anos
Se você comer cereal de arroz inflado todo dia, pode não notar mais o estalar, o quebrar e o rebentar, mas naquele dia fui transportado para os cafés da manhã da minha infância. Lyra colou o ouvido junto da tigela e fechou os olhos, hipnotizada. Então voltou a comer.
E a comer. E a comer. E eu a observava, parecia que ela não estava totalmente no controle. A embalagem dizia que uma porção recomendada para um adulto é de trinta gramas (um punhado, grosso modo). Mas, depois de trinta gramas, Lyra mal tinha tomado ar. Normalmente tenho de estimulá-la na hora das refeições, mas a primeira tigela de Coco Pops tinha simplesmente desaparecido. Quando tentei sugerir que uma tigela bastava, a ideia foi imediatamente descartada. Era como aconselhar um fumante a ficar apenas no primeiro cigarro. Ela comia não apenas irracionalmente: comia como que em transe.
*
Se o Coco Pops não parece uma comida típica de dieta, é porque eu tinha começado um experimento dietético de um mês conduzido com a ajuda de meus colegas do UCLH, onde eu trabalho. A ideia veio de dois artigos que uma colega, a produtora de TV Lizzie Bolton, me instara a ler. Eles tinham ficado largados numa pilha na minha mesa por semanas quando, por fim, arrumei tempo para eles. À primeira vista, não pareciam particularmente interessantes, mas acabariam por se revelar dois dos artigos mais importantes que já li na vida.
O primeiro fora publicado em português havia mais de uma década, em um periódico de saúde brasileiro relativamente desconhecido. Tinha um título modesto e bastante específico: “Uma nova classificação de alimentos baseada na extensão e no propósito do seu processamento”. O autor principal era Carlos Augusto Monteiro, um professor de saúde pública de São Paulo.
O segundo artigo soava ainda menos tentador. Era um experimento dietético sobre ganho de peso, talvez para promover mais um modismo: “Dietas ultraprocessadas causam ingestão de calorias em excesso e ganho de peso: um estudo controlado randomizado em regime de internato de ingestão de alimentos ad libitum“. Autor principal: Kevin Hall.
A teoria é a seguinte: a principal razão para o rápido aumento de sobrepeso e obesidade no mundo é o aumento na produção e no consumo de produtos alimentares ultraprocessados
No primeiro, Monteiro desenvolvia uma teoria; no segundo, Hall descrevia um experimento que testava essa teoria e, à primeira vista, parecia confirmá-la. A teoria é a seguinte: a principal razão para o rápido aumento de sobrepeso e obesidade no mundo, especialmente na década de 1980, é o respectivo aumento na produção e no consumo de produtos alimentares e bebidas ultraprocessados.
Eu nunca tinha ouvido falar de AUPs e estava cético em relação a uma única explicação abrangente para a pandemia de obesidade, que, sabemos, é amplamente complexa e multifatorial. Mas havia algo no sistema de classificação proposto por Monteiro que parecia original e interessante.
O sistema de classificação é hoje chamado de classificação NOVA e divide os alimentos em quatro grupos (Monteiro et al., 2019). O grupo 1 é de “alimentos in natura ou minimamente processados” — alimentos encontrados na natureza como carne, frutas e legumes, mas também coisas como farinha ou massa. O grupo 2 é de “ingredientes culinários processados”, incluindo óleos, banha, manteiga, açúcar, sal, vinagre, mel, amidos — alimentos tradicionais que poderiam muito bem ser preparados usando tecnologias industriais. Eles não são coisas com base nas quais podemos sobreviver, porque tendem a ser pobres em nutrientes e densamente energéticos. Mas combine-os com as coisas do primeiro grupo e você terá a base para comidas deliciosas. O grupo 3 é de “alimentos processados”, misturas pré-fabricadas dos grupos 1 e 2, processadas principalmente para conservação: pense em feijões enlatados, castanhas salgadas, carne defumada, peixe enlatado, pedaços de fruta em calda e pão fresco feito de modo adequado.
E então chegamos ao grupo 4, de “alimentos ultraprocessados”. É uma definição longa, talvez a mais longa que já li de uma categoria científica: “Formulações de ingredientes principalmente de uso exclusivo industrial, feitos por meio de uma série de processos industriais, muitos deles exigindo equipamentos e tecnologias sofisticados”.
Essa é só a primeira parte. Continua: “Os processos usados para produzir alimentos ultraprocessados incluem o fracionamento de alimentos integrais em substâncias, modificações químicas dessas substâncias”.
Processos e ingredientes usados para fabricar alimentos ultraprocessados são projetados para criar produtos altamente rentáveis, convenientes e hiperpalatáveis
Exatamente como Paul Hart descreveu, grãos como milho e soja são transformadas em óleo, proteína e amido, que são então ainda mais modificados. Os óleos são refinados, branqueados, desodorizados, hidrogenados e interesterificados; a proteína pode ser hidrolisada e o amido, modificado. Essas frações de alimentos alterados são então combinadas a aditivos e juntadas a partir de técnicas industriais como moldagem, extrusão e mudanças de pressão. Esse é um padrão que encontrarei por toda a minha dieta de AUPs. Listas de ingredientes, de pizzas a balas, começaram a parecer iguais.
A definição de AUP continua por muito tempo antes de fechar de um modo que reverberou subitamente: “Processos e ingredientes usados para fabricar alimentos ultraprocessados são projetados para criar produtos altamente rentáveis (ingredientes de baixo custo, prazo de validade longo, promoção de marca empática), convenientes (prontos para consumir) e hiperpalatáveis, responsáveis por suplantar pratos e refeições preparados na hora a partir de todos os outros grupos alimentares da classificação NOVA”.
Eu mal registrara a ideia de que o propósito de um alimento poderia ser importante da primeira vez que deparei com o trabalho de Monteiro e, no entanto, ele começou a cristalizar uma nuvem de ideias
que vinha pairando em minha mente há muitos anos. Eu conseguia entender que, pelo menos em teoria, os processos físicos e químicos podiam afetar como os alimentos interagem com o corpo. Mas incluir, como parte da definição, o propósito do processamento — “criar produtos altamente rentáveis” — era inteiramente novo.
Considerações sobre se os alimentos tradicionais têm um propósito diferente de substâncias feitas por corporações transnacionais com rendimentos de bilhões estavam quase completamente ausentes de discussões científicas e de políticas a respeito de alimentos e nutrição. Não foi um grande salto mental imaginar que produtos que subvertem os mecanismos evoluídos do corpo, os quais sinalizam quando parar de comer, podem sobreviver melhor no mercado.
Depois de ler o trabalho de Monteiro, achei que a classificação NOVA e os AUPs tinham algum apelo inicial enquanto ideias, mas isso era apenas uma hipótese. Então, li o experimento de Hall, que testava a ideia. Ele foi publicado na Cell Metabolism, um periódico respeitável — ainda que especializado. O experimento era bastante simples. Voluntários se alimentaram ou com uma dieta ultraprocessada, ou com uma dieta que era idêntica em termos de gordura, sal, açúcar e fibras, mas livre de qualquer AUP. Depois de duas semanas, os dois grupos inverteram: um recebeu a dieta do outro. Durante ambas as fases, os participantes podiam comer o quanto quisessem. Na dieta de ultraprocessados, os participantes comeram mais e ganharam peso, enquanto na dieta não processada eles perderam peso, apesar de terem tido acesso à quantidade de comida que desejassem. Na época, eu não tinha muita experiência com experimentos desse tipo, então era difícil criticar os detalhes. Mas o relatório tinha um peso real e os dados pareciam sólidos.
Na dieta de ultraprocessados, os participantes comeram mais e ganharam peso, enquanto na dieta não processada eles perderam peso
Só que, ainda assim, eu não estava convencido. Até os periódicos mais prestigiosos — talvez especialmente os periódicos mais prestigiosos — são cheios de ideias atraentes, bem apresentadas e aparentemente ancoradas em dados promissores, que, no fim, se mostram totalmente erradas. Na verdade, há estimativas confiáveis de que a maioria dos artigos científicos pode estar equivocada (Ioannidis, 2005). Não bastam dois artigos para mudar todo um campo. E eu achava estranho que nenhum entre as dezenas de especialistas em nutrição que viviam no Reino Unido que eu tinha entrevistado enquanto pesquisava outras matérias e documentários tivesse mencionado Carlos Monteiro, Kevin Hall ou os AUPs. O processamento não é mencionado nas diretrizes nutricionais nacionais do Reino Unido ou dos Estados Unidos. Não há identificação nas embalagens indicando se um alimento é ultraprocessado.
A despeito disso, eu me lembro de sentir uma empolgação cautelosa lendo esses artigos depois de ter posto Lyra e Sasha para dormir naquela noite. O modo como vínhamos pensando sobre comida não tinha mostrado nenhum sinal de resolver o crescente problema de doenças relacionadas à alimentação.
- Gente Ultraprocessada
- Chris van Tulleken (trad. Érika Nogueira Vieira)
- Elefante
- 432 páginas
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