Maria Homem
Viajamos viajamos, ancoramos ancoramos
Kamala, como todos nós, é fruto do pêndulo da odisseia moderna
Escrevo do verão americano, onde vim fazer um trabalho no Art Institute de Chicago.
Escrevo essa frase e logo me dou conta, mais uma vez, da facilidade com que cedemos símbolos. Ou de como os símbolos – e as histórias que eles contam – são apropriados pelos mais fortes.
Como sabemos, somos americanos. Nascemos e vivemos na América.
‘God bless America’, no entanto, é a marca de um dos 36 países que compõem a América. Um país que tomou esse significante para si.
E mais: somos americanos e não latinoamericanos. Não só o Brasil, o continente inteiro recebeu imigrantes de todo o planeta: europeus do sul e do norte, africanos, asiáticos, árabes, indianos, além dos originários indígenas (etimologicamente, natural do lugar). Somos mais complexos que herdeiros do latim com que o Império Romano unificou seu poder. Assim como a do Norte, a América do Sul não é latina, embora tenha sido inicialmente colonizada por povos ibéricos.
Ou seja, por um lado cedemos símbolos, por outro ganhamos rótulos. Perdemos América, carregamos Latam.
O Art Institute, como o Louvre, o Met e qualquer grande museu, narra a saga humana sobre a terra. Não por acaso, com grande parte do (valiosíssimo) acervo com símbolos concretos tomados de outros lugares. E 90% de artistas homens.
Voltando: o que tem no verão estadunidense (rs) além de pessoas indo nos museus e tomando sol nas praias do lago Michigan? Campeonato de baseball.
Baseball, aquele jogo que parece tão simples quanto o taco que a gente jogava na infância ao mesmo tempo que você não entende nada. Assisti o jogo num estádio lindo e lotado, passeando no Coliseu moderno cheio de comida, cerveja em fálicos e imensos tacos de plástico (tamanho original) e mil lojinhas Cubs (o nome do time).
Por um lado cedemos símbolos, por outro ganhamos rótulos
No dia seguinte, com o olho treinado, você percebe que Cubs é a marca predominante que as pessoas vestem na cidade inteira. E até fica na dúvida se os moradores de Chicago amam mesmo o Cubs ou se são turistas colonizados pelos símbolos do ainda poderoso Império.
Essa foi a primeira vez que entendi o jogo: um argentino paciente sentou do meu lado e explicava as regras e os acontecimentos, sempre dramáticos. Ao menos arrancavam aplausos e cantos de guerra da torcida a cada três minutos. E olha que foram horas. O que aprendi dessa batalha?
Que esse é um jogo em que cada um tenta voltar pra casa, de preferência o mais rápido possível, correndo. Mas que não vai ser fácil, pois você está em campo sozinho com 9 adversários sincronizados que vão fazer de tudo pra te impedir. Um por vez, cada jogador terá a chance de viver a angústia do herói solitário que dá a volta ao mundo – o diamond, como eles chamam. A bola é uma espécie de talismã que o inimigo carrega para impedir o batedor de circular o diamante e voltar para a Home. Se eles pegam a bola no ar, não vale o esforço da tacada. Se eles encostam a bola no seu corpo, você tem que voltar pra trás. Não é interessante que a parábola do retorno ao lar continue a ser um ritual repetido há milênios? Somos todos Odisseus, again and again. Sempre às voltas com o arquétipo de ter que lutar para voltar para casa.
Talvez precisemos repetir para elaborar o paradoxo que nos anima: você ao mesmo tempo quer e não quer ficar em casa, tranquilo, tomando uma cerveja na varanda e vendo o por-do-sol. Ulisses, afinal, desejava o que? Era recém-casado com Penélope e tinha um bebê, Telêmaco. Should I stay or should I go? No fim, nosso herói teve que ficar dez anos na guerra de Tróia e outros dez tentando voltar. O baseball é como a Odisseia: você quer voltar pra casa, a sua Home, mas para isso precisa dar a volta ao mundo e vencer todos os obstáculos.
Como sabemos, Ulisses saiu vitorioso: voltou para Ítaca, expulsou o mal e reconquistou seu domínio.
Mas tem gente, aliás muita gente, que não tem tanta sorte. Alguém aprisionado pela ninfa Calipso. Ou que enfrenta desemprego, fome, guerra. Ou tem a vontade de buscar um sonho em outro lugar. O caso é que continuamos migrando de terra em terra.
Kamala, como todos nós, é fruto do pêndulo da odisseia moderna: viajamos viajamos, ancoramos ancoramos. Um economista jamaicano encontrou uma bióloga indiana e na Califórnia se estabeleceram. Uma nova home se construiu e gerou frutos conscientes de sua potência e dispostos a tomar as rédeas. Kamala Harris, Nancy Pelosi, Maria Corina Machado, Roberta Metsola, tantas outras.
Yes, we Kam. Com ou sem filhos, com ou sem marido, a Odisseia contemporânea será cada vez menos colonizada e mais feminina.
Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.
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