Trecho de Livro: Alguma Vez É Só Sexo?, de Darian Leader — Gama Revista

Trecho de livro

Alguma Vez É Só Sexo?

Psicanalista britânico Darian Leader destrói a ideia de sexo sem significado, mostrando em novo livro os impulsos que se escondem por trás de um simples ato carnal

Leonardo Neiva 25 de Julho de 2024

É aquela frase que a gente ouve em filmes, séries, reality shows e também, de vez em quando, na vida real: foi só sexo. Querendo dizer, é claro, que não há sentimentos envolvidos — apenas uma ação carnal, como devorar um prato de comida quando se está faminto — e implicitamente sugerindo que, por isso, o ato não teve significado algum. Em outras palavras, tudo bem, vida que segue. Mas será mesmo?

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Essa noção do sexo sem significado, ou mesmo de todos os significados que geralmente atribuímos a ele, é o que o célebre psicanalista britânico Darian Leader bota em xeque no livro que já traz um questionamento central em seu título: “Alguma Vez É Só Sexo?” (Zahar, 2024). Só para começar, ele questiona de cara aquela velha ideia da sexualidade como uma força animalesca que nos impede de resistir a certos impulsos, justificativa historicamente utilizada por homens para explicar seus deslizes. No fim das contas, não há nada na biologia que dê respaldo a essa hipótese.

Um dos principais responsáveis por popularizar a obra de Lacan pelo mundo, Leader explora também o fato de sempre haver significados ocultos por trás do ato sexual, seja realizar uma fantasia, expressar ansiedade, externar desejos violentos e até dar vazão a uma gama de sentimentos que vão do amor à culpa. Com tradução de Vera Ribeiro, a obra se baseia em estudos de caso, na pesquisa histórica e na vasta experiência clínica do autor, descortinando a importância do sexo em diversos aspectos das nossas vidas, com potencial para revolucionar a visão que temos sobre o assunto.


Todo mês, um corretor de valores estabelecia para si a mesma meta, muito acima do que o chefe esperava dele, e quase sempre a atingia, apesar da volatilidade do mercado e da recessão econômica. Quando não a atingia, entrava em aplicativos de encontros e combinava uma saída com uma desconhecida para tomar uns drinques e transar. Levava o mesmo papo superficial durante os drinques e seguia a mesma rotina durante o sexo: penetração hidráulica com poucas preliminares, ejaculação e, em seguida, uma partida rápida e insensível. Durante a transa, evitava o contato visual e pensava no lucro que tinha deixado de auferir em sua corretagem. De novo em casa, tomava um Xanax e caía no sono, sem pensar na pessoa com quem acabara de estar.

Aqui poderíamos perguntar: por que o sexo era necessário? Seria ele, como o Xanax, apenas uma forma de automedicação, de acalmar a angústia e a aguda sensação de constrangimento que acompanhava sua incapacidade de controlar os mercados? Seria uma tentativa oculta de comunicar-se com outro ser humano, uma tentativa que sempre se frustrava, ou talvez um ato hostil de que ele não tinha conhecimento? Quando lhe perguntei sobre o número em si, sobre a cifra que ele se achava obrigado a gerar todo mês, ele explicou que esse tinha sido o lucro mais alto obtido por um ás da corretagem de sua empresa anterior. Era o número que ele se sentia compelido a atingir desde então, e nada menor era aceitável.

Assim, os atos sexuais que ocorriam quando ele fracassava dificilmente poderiam ser tomados como expressões de uma pulsão sexual básica, e sim, ao contrário, como tratamentos para sua incapacidade de se igualar, em algum sentido, a um outro homem. É claro que isso poderia ser interpretado sexualmente — havia desejo ou ciúme entre eles? —, mas esse ato heterossexual era claramente uma atuação na qual o sexo preenchia uma outra função menos óbvia. A natureza repetitiva e inalterável dessa sequência sugeria que, para ele, a identidade da mulher não tinha importância e que alguma outra coisa era encenada a cada vez, algo que se parecia com sexo, mas nunca era apenas isso.

Houve época em que a análise era famosa por ver sexo em tudo: os sintomas físicos e psíquicos eram explicados em termos de desejos sexuais inconscientes

Talvez isso pareça uma espécie de estranha inversão da psicanálise. Houve época em que a análise era famosa por ver sexo em tudo: os sintomas físicos e psíquicos eram explicados em termos de desejos sexuais inconscientes e isso significava que, se você encontrasse um analista numa festa, tinha que tomar cuidado com o que dizia. O sexo era o segredo não dito de praticamente tudo, moldando as relações pessoais e os dramas sociais mais amplos da guerra, da política e da cultura. No entanto, como perguntou o crítico norte-americano Kenneth Burke na década de 1930, e se o próprio sexo encobrisse outras motivações ainda mais importantes? Quando se diz, por exemplo, que os homens pensam em sexo a cada sete segundos, será que na verdade eles estão pensando em outra coisa? Ou, aliás, será que pensar em sexo poderia ser uma distração de outros pensamentos menos palatáveis?

Pesquisas posteriores afirmaram que os sete segundos estavam mais para uma vez a cada noventa minutos e, em linhas mais gerais, que as ideias ligadas à comida eram tão significativas quanto essas, ou até mais. É óbvio que isso dependia do ponto em que a pessoa se encontrava na vida — um bebê, um adolescente, um senhor — e de uma multiplicidade de outros fatores, mas nos leva a indagar em que pensamos realmente ao pensar em sexo. Todos sabem que, no tocante à comida, raramente é apenas sobre comida: comemos ou pensamos em comer quando estamos infelizes, inquietos, agitados, angustiados ou solitários. Será que o mesmo se aplica ao sexo?

O uso global da pornografia na internet aumenta na noite de domingo e prossegue ao longo da segunda-feira, dia em que a maioria das pessoas volta ao trabalho e, portanto, pode-se presumir que tenham que enfrentar problemas e pressões dos quais o fim de semana as protegeu. O uso de pornografia no escritório, aliás, chega a 63% dos trabalhadores e 36% das trabalhadoras. O recurso às imagens sexuais, nesse caso, bem poderia ser analgésico, e as pesquisas sobre sexualidade no século XX só fizeram agravar essa questão, sugerindo que os seres humanos não têm realmente um instinto sexual inato que almeje a copulação. Os corpos não são como pauzinhos que produzem fogo quando esfregados, já que são necessárias inúmeras condições, preferências e dicas para que cheguemos a ficar excitados.

As frequentes comparações de nossa vida sexual com a dos animais — “Eles transam feito coelhos!” — não são úteis neste ponto, visto que o comportamento animal nem sempre é tão automático e instintivo quanto poderíamos imaginar. Se as ovelhas podem praticar sexo nos primeiros dias de vida, os chimpanzés machos podem precisar de meses ou até anos de prática para conseguirem funcionar sexualmente, do mesmo modo que os orangotangos machos têm uma curva acentuada de aprendizagem. Um longo período compartilhando uma gaiola pode tornar o sexo menos provável, e as preferências e até estilos sexuais podem impedir algumas espécies de praticar um coito indiscriminado. A velha ideia de que a sexualidade é uma ardente força animalesca dentro de nós, aflita para se libertar porém contida por forças sociais, tem pouco respaldo, e até o que se afigura um comportamento excessivo de acasalamento pode ser uma medida da frustração, e não de um impulso sexual.

Comemos ou pensamos em comer quando estamos infelizes, inquietos, agitados, angustiados ou solitários. Será que o mesmo se aplica ao sexo?

Já nos anos 1940 e 1950 biólogos e etologistas afirmavam que, enquanto a maioria dos mamíferos inferiores tem instintos sexuais regidos por hormônios, não é este o nosso caso, e que até a expressão dos hormônios pode ser inibida ou impedida por fatores psicológicos, para adiar a puberdade ou interferir na maturação sexual. O que nos impele a buscar o sexo é muito mais complexo do que um motor endógeno, e resulta mais de processos sociais que de processos biológicos inatos. Quais podem ser esses processos constitui uma das coisas que pretendo explorar neste livro, junto com a questão mais geral do lugar que o sexo pode ter em nossa vida e, em termos cruciais, do que realmente fazemos quando o praticamos.

Os estudos científicos sobre sexo que buscam explicação para esses pontos conectando as pessoas a aparelhos medidores enquanto elas assistem a filmes tristes ou copulam tendem a decepcionar, pois negligenciam a dimensão do sentido, que é muito central nas interações humanas. Quando a penetração, por exemplo, é vivenciada como um ato de posse, ou de amor, ou de exploração, isso lhe dá um sentido que é difícil ignorar ou negar. Quando as pessoas dizem “foi só sexo, não significou nada”, isso só mostra o quanto o sentido é importante para todo o processo. Mas o sentido é difícil ou até impossível de medir.

É mais fácil, claro, contar orgasmos, e assim os estudos científicos e a pornografia compartilham a mesma abordagem: ambos separam o sexo da significação e da questão das lealdades que diríamos definirem os apegos humanos. Afinal, na pornografia os personagens nunca demonstram nenhuma fidelidade a ninguém: não rejeitam o sexo em função de compromissos anteriores, do mesmo modo que, nos experimentos científicos, os sujeitos não são incluídos quando se recusam a praticá-lo. Todos os projetos recentes de criar uma pornografia emancipada — o que poderíamos chamar de “pornografia paritária” — parecem indiferentes a isso, quando tudo que se faria necessário seriam personagens que dissessem “Agora não” ou “Com você, não”. A cultura de encontros sexuais a toque de caixa, que a internet tanto facilitou nos últimos anos, incentiva os usuários a tornarem sua atividade sexual parecida com a pornografia ou com estudos científicos: simples operações físicas nas superfícies côncavas e convexas de um corpo humano. Mas a dor, o desconsolo, o arrependimento e o sentimento de vazio que acompanham os auges da excitação mostram que há muito mais em jogo. O que as pessoas desejam sexualmente e o que de fato fazem ao se encontrarem com outras pessoas são duas coisas em geral completamente diferentes, e a margem entre elas é ocupada pela fantasia. Como nossas fantasias se formam, e que efeitos têm elas na vida sexual?

A cultura de encontros sexuais a toque de caixa, que a internet tanto facilitou nos últimos anos, incentiva os usuários a tornarem sua atividade sexual parecida com a pornografia

Produto

  • Alguma Vez É Só Sexo?
  • Darian Leader (trad. Vera Ribeiro)
  • Zahar
  • 208 páginas

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