Trecho de Livro: Eros, o Doce-Amargo, de Anne Carson — Gama Revista

Trecho de livro

Eros, o Doce-Amargo

Da Grécia antiga à literatura moderna, a escritora canadense Anne Carson conta a história das interpretações do amor ao longo dos séculos

Leonardo Neiva 23 de Dezembro de 2022

Ah, o amor! Fonte de alegrias e frustrações quase na mesma medida, o sentimento já era desde a Grécia antiga conhecido por uma dualidade que a poeta Safo descrevia como “doce-amargo”. Em seu primeiro livro de crítica literária, a célebre escritora canadense Anne Carson adentra a literatura, da Antiguidade aos tempos modernos, voltada ao “eros”, que está na raiz do erótico e é um dos termos gregos para designar ele mesmo, o amor.

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“A doçura de Eros é inseparável da sua amargura, e cada qual participa, de uma maneira ainda não óbvia, da nossa vontade humana por conhecimento”, diz a autora em “Eros, o Doce-Amargo” (Bazar do Tempo, 2022). Resultado de sua tese de doutorado, a obra se tornou um clássico do gênero, mesclando ensaio, teoria e poesia. Da literatura à filosofia, da história à psicanálise, Carson viaja ao longo de séculos de produção intelectual para produzir um panorama vasto sobre as interpretações desse sentimento.

Uma das escritoras mais premiadas da atualidade, a autora de “Autobiografia do Vermelho” (Editora 34, 2021) também explora o amor e o desejo como uma perda, um buraco que passa a integrar o ser que ama de forma irrevogável. “Quem é o verdadeiro sujeito da maioria dos poemas de amor? Não é a pessoa amada. É aquele buraco”, ressalta no trecho que Gama selecionou. E é dessa fonte de aparente contradição entre ausência e presença, assim como da doçura e amargor, que a literatura de amor vem se alimentando há milênios, uma história que Carson desfia de maneira profunda e espirituosa.


Encontrando o limite

Eros tem a ver com fronteira. Ele existe porque certas fronteiras existem. É no intervalo entre se esticar para tentar alcançar e de fato agarrar algo, entre olhar de relance e receber o olhar de volta, entre um “eu te amo” e “eu também te amo”, que a presença ausente do desejo ganha vida. Mas as fronteiras do tempo e do olhar e do “eu te amo” são apenas efeitos secundários da fronteira principal e inevitável que cria Eros: a fronteira da carne e do eu que existe entre você e eu. E é, de repente, apenas no momento em que eu ia dissolver a fronteira, que percebo que nunca vou conseguir fazer isso.

Bebês começam a enxergar percebendo os contornos das coisas. Como sabem que um contorno é um contorno? Porque desejam com paixão que um contorno não seja um contorno. A experiência do eros como falta, para a pessoa, é um alerta sobre os limites de si mesma, das outras pessoas, das coisas em geral. É o limite, que separa minha língua do sabor pelo qual ela anseia, que me ensina o que é um limite. Assim como o adjetivo glukupikron de Safo, o momento do desejo é aquele que desafia o próprio limite, por se tratar de um composto de opostos forçados a estarem juntos sob pressão. Prazer e dor são inscritos na pessoa que ama ao mesmo tempo, na medida em que a desejabilidade do objeto de amor deriva, em parte, da sua falta. A quem falta o objeto de amor? A quem ama. Se acompanharmos a trajetória de eros, encontraremos consistentemente esse mesmo caminho: ele se move de quem ama em direção à pessoa amada, depois ricocheteia de volta a quem ama e ao buraco que existe em quem ama, que antes tinha passado despercebido. Quem é o verdadeiro sujeito da maioria dos poemas de amor? Não é a pessoa amada. É aquele buraco.

Quando eu desejo você, uma parte de mim vai embora: a falta que eu sinto de você faz parte de mim. Assim pensa quem ama quando está à beira de eros. A presença do querer desperta em quem ama a nostalgia da totalidade. Seus pensamentos se voltam a questões de identidade pessoal: é preciso recuperar e reincorporar o que está faltando se quiser ser uma pessoa completa. O locus classicus dessa visão sobre o desejo é o discurso de Aristófanes no Banquete de Platão. Aqui Aristófanes explica a natureza do eros humano por meio de uma antropologia fantástica. Os seres humanos eram originalmente organismos redondos, cada um composto de duas pessoas colocadas juntas formando uma esfera perfeita. As esferas perfeitas saíam por aí rolando e eram extremamente felizes. Mas essas criaturas esféricas ficaram ambiciosas demais, queriam rolar para cima até o Olimpo, então Zeus cortou cada uma delas ao meio. Como resultado, agora todo mundo precisa passar a vida inteira buscando aquela outra única pessoa que pode trazer de novo a completude. “Cortado em dois como um daqueles peixes que são planos, o peixe-chato”, diz Aristófanes, “cada um de nós está pra sempre caçando a metade correspondente de si mesmo”.

Quando eu desejo você, uma parte de mim vai embora: a falta que eu sinto de você faz parte de mim. Assim pensa quem ama quando está à beira de eros

A maioria das pessoas acha que existe algo perturbadoramente lúcido e verdadeiro na imagem de Aristófanes de amantes como pessoas cortadas ao meio. Todo desejo arde por uma parte de si mesma que desapareceu, ou pelo menos é o que sente a pessoa apaixonada. O mito de Aristófanes justifica esse sentimento, de maneira tipicamente grega, ou seja, culpando Zeus por tudo. Mas Aristófanes é um poeta cômico. Podemos procurar, se queremos uma exegese mais séria, amantes mais sérios. Uma característica do raciocínio sério dessas pessoas que amam nos impressiona de imediato. É chocante.

A lógica no limite

Quando eu te desejo, uma parte de mim se vai: sua falta é minha falta. Eu não sentiria a sua falta se você não fosse uma parte de mim, raciocina quem ama. “Um buraco está sendo roído em [meus] órgãos vitais”, diz Safo. “Você arrancou os pulmões do meu peito” e “me pregou pelos ossos”, diz Arquíloco. “Você me usou e abusou” (Álcman), “me ralou”, “devorou minha carne” (Arquíloco), “sugou meu sangue” (Teócrito), “decepou meus genitais” (Arquíloco), “roubou minha razão” (Teógnis). Eros é expropriação. Ele rouba do corpo, leva membros, substância, integridade e deixa quem ama, essencialmente, com menos. Essa atitude em relação ao amor é fundamentada para os gregos na tradição mítica mais antiga: Hesíodo descreve em sua Teogonia como a castração deu à luz a deusa Afrodite, nascida da espuma que estava ao redor dos genitais decepados de Urano. O amor não acontece sem perda para o eu vital. O amante é um perdedor. Ou pelo menos isso é o que ele considera.

Mas essa consideração do amante envolve uma mudança rápida e astuta. Tentando alcançar um objeto que se mostra fora e além de si mesmo, o amante é provocado a perceber esse eu e seus limites. A partir de um novo ponto de vista, que poderíamos chamar de autoconsciência, o amante olha para trás e vê um buraco. De onde vem esse buraco? Vem do processo classificatório do amante. O desejo por um objeto que ele nunca soube que lhe faltava é definido — por meio de um deslocamento de distância — como desejo por uma parte necessária de si mesmo. Não é uma nova aquisição, mas algo que sempre foi, propriamente, dele. Duas faltas se tornam uma.

A lógica inconstante do amante é um desdobramento natural das suas artimanhas de desejo. Vimos como amantes, igual a Safo no fragmento 31, reconhecem Eros como uma doçura feita de ausência e dor. Esse reconhecimento coloca em jogo várias táticas de triangulação, várias maneiras de manter o espaço do desejo aberto e elétrico. Pensar nas próprias táticas é sempre um negócio capcioso. A exegese mede três ângulos: o amante propriamente dito, a pessoa amada e o amante redefinido como incompleto sem a pessoa amada. Mas essa trigonometria é um truque. O próximo movimento do amante é colapsar o triângulo, reduzindo-o a uma figura de dois lados e tratando os dois lados como um círculo. ‘Ao me ver oco, me reconheço todo’, diz para si mesmo. O próprio processo de raciocínio do amante o mantém suspenso entre os dois termos do trocadilho.

O amor não acontece sem perda para o eu vital. O amante é um perdedor

Parece impossível falar ou raciocinar sobre a falta erótica sem cair nessa linguagem de trocadilhos. Considere, por exemplo, Lísis de Platão. Nesse diálogo, Sócrates está tentando definir a palavra grega philos, que significa tanto “amoroso” quanto “amado”, “amigável” e “querido”. Ele se pergunta se é possível o desejo de amar ou fazer amizade estar separado da falta que se sente desse algo ou alguém. Seus interlocutores são levados a reconhecer que todo desejo é anseio por aquilo que pertence propriamente a quem deseja, mas foi perdido ou levado embora de alguma forma — ninguém diz como. Trocadilhos piscam rápido à medida que o raciocínio acelera. Essa parte da discussão depende de um uso hábil da palavra grega oikeios, que significa tanto “adequado, aparentado, semelhante a mim” quanto “pertencente a mim, propriamente meu“. Então Sócrates diz a dois rapazes que são seus interlocutores:

… Desejo e amor e anseio são direcionados ao que é semelhante a
alguém [tou oikeiou], ao que parece igual. Então, se vocês dois são
amigos queridos [philoi] um do outro, então de alguma maneira
natural vocês pertencem um ao outro [oikeioi esth’].

É profundamente injusto Sócrates escorregar de um significado de oikeios para outro, como se fosse a mesma coisa reconhecer em outra pessoa uma alma amiga e reivindicar essa alma como sua propriedade, como se fosse perfeitamente aceitável no amor borrar a distinção entre você e a pessoa amada. Todo raciocínio e toda esperança de felicidade que quem ama tem são construídos sobre essa injustiça, essa reivindicação, essa distinção borrada. Por isso, seu processo de raciocínio está sempre se movendo e buscando, na fronteira da linguagem, os lugares em que os trocadilhos acontecem. O que o amante está procurando na fronteira?

O trocadilho é uma figura de linguagem que depende da semelhança de som e disparidade de significado. São combinados dois sons que se juntam perfeitamente como formas auditivas, mas que se mantêm, insistente e provocativamente, separados no sentido. Você percebe a homofonia e ao mesmo tempo enxerga o espaço semântico que separa as duas palavras. A semelhança é projetada na diferença numa espécie de estereoscopia. Existe algo de irresistível nisso tudo. Os trocadilhos aparecem em todas as literaturas, aparentemente são tão antigos quanto a própria linguagem e nunca deixam de nos fascinar. Por quê? Se soubéssemos a resposta dessa pergunta, saberíamos o que quem ama procura enquanto se move e raciocina nas fronteiras do seu desejo.

A mistura entre o eu e o outro acontece com muito mais facilidade na linguagem do que na vida, mas de certa forma envolve o mesmo desaforo

Ainda não temos uma resposta. Entretanto, precisamos prestar atenção no trocadilho como algo que caracteriza a lógica de quem ama: a estrutura e irresistibilidade do trocadilho têm algo importante a nos dizer sobre o desejo e sobre a busca do amante. Vimos como Sócrates usa o trocadilho para passar de um sentido de oikeios [parentesco] para outro (“meu”) quando está discutindo eros como falta em Lísis. Aqui, Sócrates não tenta esconder o jogo de palavras; pelo contrário, dá destaque ao jogo fazendo um uso incomum da gramática. Ele mistura de propósito pronomes recíprocos e reflexivos quando se dirige aos dois philoi, Lísis e Menexenus. Ou seja, quando Sócrates diz a eles “… vocês pertencem um ao outro” , usa uma palavra para ‘um ao outro’ que mais comumente significa ‘vocês mesmos’ (hautois). Sócrates está brincando, por meio de palavras, com os desejos dos jovens amantes que estão ali diante dele. A mistura entre o eu e o outro acontece com muito mais facilidade na linguagem do que na vida, mas de certa forma envolve o mesmo desaforo. Assim como eros, os trocadilhos debocham dos limites das coisas. Seu poder de seduzir e alarmar surge disso. Dentro de um trocadilho, é possível apreender uma verdade melhor, um significado mais verdadeiro, quando comparado ao sentido de cada palavra separada. Mas o vislumbre desse significado melhorado, que se mostra rápido em um trocadilho, é uma coisa dolorosa. Pois é um vislumbre inseparável da convicção que temos de sua impossibilidade. As palavras têm limites. Você tem limite.

Produto

  • Eros, o Doce-Amargo
  • Anne Carson
  • Bazar do Tempo
  • 264 páginas

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