Fabiana Moraes
Marina levou pra casa um troço que sua família ainda não conhecia: autoestima
Em um encontro com adolescentes de uma escola pública, uma descoberta: são a primeira geração a quebrar, entre seus pais, mães, avôs e avós, um ciclo de ódio ou vergonha de si mesmos
Recebi estes dias um convite pouco usual na rotina de congressos acadêmicos, encontros de jornalismo, seminários em universidades e bancas de mestrado e doutorado: conversar com estudantes de uma escola pública do ensino médio. Topei na hora: quem vive apenas no seu quadrado abrevia o próprio olho. Deusolivre.
Ao chegar lá, em uma sala de eventos espaçosa, dezenas de jovens — barulhentos e sorridentes como felizmente são a maioria dos jovens — ocupavam um grande círculo de cadeiras azuis. O professor Raul Vinícius, que me convidou, tinha colocado uma playlist ótima com artistas como Di Melo para tocar. A Escola Técnica Dom Bosco, na zona norte de Recife, forma estudantes no ensino médio e ainda nos cursos técnicos de publicidade e marketing.
Seria a segunda conversa promovida pelo docente, que organizou uma série de rodas para falar sobre relações raciais e educação com estudantes de todas as suas turmas. Resolvi levar algo mais específico: imagens e falas midiáticas sobre o Nordeste, pensando nas atualizações, ao longo das décadas, dos discursos que nos querem dóceis, engraçados, vulneráveis ou sedentos.
Mas, para minha absoluta alegria, não consegui terminar a apresentação.
Logo de início, avisei: eu não estava ali para falar de estereótipos, mas para discutir o que motiva a manutenção deles. Nas disputas de poder envolvidas aí e na mais absoluta necessidade de criarmos novos mundos por imagens e discursos. Como futuras e futuros técnicos que lidariam com o abecedário da publicidade e do marketing, eles formavam parte do bonde do futuro (lembrando que o futuro também está acontecendo agora).
Antes mesmo que eu chegasse à metade da apresentação, que acontecia seguida dos muitos comentários do grupo, um assunto se interpôs radicalmente: eles e elas traziam histórias envolvendo seus pais, mães, avós e irmãs. Eram relatos sobre a própria representação de si e como mudanças nessas representações estavam provocando conflitos dentro dos lares. Embates nos quais discussões sobre raça, machismo e homossexualidade, antes colocadas na conta do “deixa pra lá” ou não-vamos-falar-sobre-isso, ganharam espaço.
Percebi na hora: a roda girou.
Os comentários eram, aparentemente, mais pessoais. Mas então um puxava outro, que puxava outro, que puxava outro. Parei de passar os slides: aquilo não podia ser só uma coincidência. Eu estava diante de um fenômeno. Abri mais os ouvidos para entender o que se passava ali: eram relatos de adolescentes de 14 a 19 anos, pessoas nascidas neste novo século tão repleto de novidades quanto de esqueletos trazidos do que deveria ter ficado no passado, como o fortalecimento de bandeiras racistas da extrema-direita.
É gente que cresceu em um Brasil no qual, apesar de uma série de retrocessos, há também um novo desenho social nascido com políticas como as cotas raciais e sociais em espaços diversos e o espraiamento de debates comportamentais e estruturais nas redes digitais. Isso fez com que uma questão como o feminismo, por exemplo, deixasse de ser circunscrita a círculos já iniciados na conversa para alcançar milhões de pessoas em lugares distintos . Esse fenômeno vai ganhar impulso, no Brasil, principalmente a partir de 2010, quando a venda de aparelhos celulares, por exemplo, alcançou quase 203 milhões de aparelhos (já eram mais celulares que habitantes). Também naquele ano, quando o Orkut ainda reinava, o Brasil já aparecia no topo dos países do mundo que mais acessavam as redes sociais.
Era o começo do fim dessa conversa de “deixa pra lá” ou não-vamos-falar-sobre-isso. Dentro de casa, inclusive.
No encontro, dentre as questões levantadas por um grupo formado por uma maioria preta e parda, a raça era a mais latente. Dois assuntos mais específicos aí atrelados apareceram: o primeiro foi o limbo enfrentado por quem é filha ou filho de famílias birraciais e não carrega a pele preta o bastante para ser considerada negra/o, nem tão clara para ser considerada/o branca/o. O outro, ainda mais presente, foi o cabelo não alisado. Quero me deter nele.
Muitas jovens falaram sobre os embates que seus cabelos trançados ou altos ou crespos provocavam dentro de suas casas. Em lares, por exemplo, cujas mulheres aprenderam a se verem mais valorosas e bonitas somente após o uso da chapinha. O abandono dessa prática já foi identificado academicamente como algo não meramente estético, mas político: a dissertação “Cabelo Importa: Os significados do cabelo crespo/cacheado para mulheres negras que passaram pela transição capilar“, de Anita Soares (Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE) é um exemplo. “Tema contemporâneo e fortemente significativo na vida de milhares de mulheres negras, a transição capilar ressignifica uma estética negra negada, via de regra, desde a infância”, escreve ela.
Quando Marina começou a transição capilar, os choques entre ela e sua avó também tiveram início. Negando o cabelo crespo da neta, aquela senhora continuava negando a si
Esse é o caso de um dos relatos mais emocionantes que eu ouvi naquele dia: foi o de Marina Santos, 15 anos. Desde os 9, seu cabelo era alisado, um artifício também usado por sua avó e sua mãe. Mas, a partir do começo deste ano, Marina resolveu, incentivada por colegas, a deixar seus cabelos crespos aparecerem. Quando ela começou a transição capilar, os choques entre ela e sua avó também tiveram início: a aparência da adolescente passou a ser classificada como desleixada, descuidada, feia. Negando o cabelo crespo da neta, aquela senhora continuava negando a si. Quando compartilhou a história com a turma, Marina se emocionou, e eu entendi perfeitamente a razão: a jovem vive conflito delicado de amar uma pessoa que de certa forma também a repudia (mas que também lhe quer bem). Abaixo, ela conta melhor o que está vivendo:
Não foi do nada que decidi parar de alisar o meu cabelo. Foi uma ideia muito difícil de aceitar – e ainda está sendo. Comecei aos nove anos, por influência da família e dos amigos da escola, além da influência da TV. Via personagens de cabelos lisos, brancas, classe média alta, e pensava “meu Deus como queria ser essas meninas”. Ia dormir e tinha que orar, às vezes pedia para trocar de corpo e ser elas um dia. Era minha família que incentivava principalmente, diziam “seu cabelo é ruim”, “é cabelo que não entra água”. Eu também ouvia piada dos amiguinhos. Passei a achar normal. Praticamente todas as mulheres da minha família têm cabelos alisados. Minha mãe tinha, mas agora é cacheado. Ela diz: “Marina, quando você era criança, eu não sabia lidar com seu cabelo.” Quando comecei a parar de alisar, ela falou que o meu cabelo estava bonito e eu fiquei muito feliz, pois na minha cabeça de criança, quando ela esticava meu cabelo, estava dizendo que ele era muito feio. Não lembro de um momento da infância com alguém dizendo que meu cabelo estava bonito. Mas em um outro lado da família, a reação não foi boa. Dizem “tá horroroso, vão tirar onda da tua cara”. Quando alisava, doía. Eu dizia “ai!”, mas me falavam que beleza doía mesmo. Se eu a quisesse, ia doer. Quando era pequena, faziam tranças em mim, doíam também. Este ano, o que mudou foram os comentários: antes ouvia que era feio deixar crespo, e agora ouço que o cabelo alisado é o problema, que eu devia voltar para a minha origem. Não é fácil. Às vezes, não vou negar, dá vontade de passar um produto, uma chapinha, alisar. Me olho no espelho agora e vejo uma pessoa totalmente diferente do que sempre fui, foi uma mudança radical”.
Arquivo pessoal
O fato é que, assim como os cabelos de Marina, sua família — e a de milhões de pessoas no país — passa também por uma transição. São gerações que cresceram (como eu) sem qualquer discussão sobre racismo em suas casas, gerações principalmente de mulheres que assimilaram padrões de comportamento limitantes e machistas. De uma sociedade que aprendeu, por exemplo, a máxima “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” e agora percebe o enorme erro de ficar em silêncio frente a agressões de toda ordem.
Agora, esses pais e mães, avôs e avós, lidam com filhos e filhas, netas e netos, inscritos em outros contextos, em uma ordem na qual marcas anteriormente negativadas passam a simbolizar amor próprio e respeito a si. Não é pouca coisa, e o fenômeno requer um trabalho mútuo: de um lado, famílias que vêem certezas e comportamentos arraigados abalados justamente por pessoas que criaram. Do outro, jovens que encontram nessas famílias reproduções daquilo que buscam superar. Atravessando esses caminhos, está ela, a autoestima. Para os primeiros, uma desconhecida. Para os segundos, um bem importante a ser conquistado e, mais ainda, protegido.
O que consegui dizer a Marina e a outras pessoas que relataram questões muito parecidas com a dela é que talvez ali esteja toda uma geração que vai levar para casa um espelho. Um espelho no qual esses pais e mães, vós e vôs irão se olhar sem se enxergarem como algo a ser consertado. A não associarem seus cabelos crespos e pele escura a algo feio, incivilizado. O que consegui dizer a Marina é que ela iria levar para casa, nem que fosse com o cuidado consigo mesma, um presente: a autoestima que no seu lar, por décadas e décadas, faltou.
Saí da escola feliz como há muito não saía de um encontro com estudantes. Fiquei pensando em uma mudança silenciosa que está acontecendo nesse Brasil no qual não há apenas a tragédia de parlamentares que desejam penalizar meninas grávidas após estupros. Há também esses e essas jovens com quem dividi suco e biscoito Maizena. Há o desejo, a sensibilidade e a inteligência de pessoas que estão aprendendo, também, que são criaturas merecedoras da felicidade. Não tive essa oportunidade na escola (nem na universidade). É bom ver, no meio de tanta pancada, que alguma coisa mudou. E que nós, cuja autoestima inexistiu ou foi vacilante, ainda estamos em sala de aula, aprendendo.
*
Obrigada ao professor Raul, a Marina e a todas as pessoas que me receberam. Espero que me convidem para voltar.
Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.
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