Casamento aberto: mais ou menos monogâmicos — Uma investigação — Gama Revista

Casamento Aberto O relato de uma mulher e suas reflexões sobre o casamento (feliz) que aos 15 anos ganhou a possibilidade de novos encontros

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Mais ou menos monogâmicos

18 de Abril de 2020

Uns dez anos atrás, uma amiga começou a sair com um cara casado: o tal casamento era aberto, e essa minha amiga, apesar de um pouquinho hesitante, acabou entrando mais e mais fundo na relação. Tão fundo que, em alguns meses, ela foi morar com o casal original. Lembro que, quando eu e o André, meu marido, fomos jantar uma noite com eles, o que nos deixou perplexos não foi propriamente o arranjo (para nós) inusitado, ou o quanto parecia estar funcionando, e sim o fato de que, com aquelas duas mulheres bonitas e divertidas e aquele cara, a expressão “areia demais pro caminhãozinho” ganhava novas proporções.

Esse foi meu primeiro contato razoavelmente direto com um relacionamento aberto (e a história deles não acabou bem, mas isso são outros quinhentos). Na verdade, se você dá um Google no assunto, sobretudo em inglês, descobre que o que as pessoas chamam de “open relationship” pode variar desde, por acordo mútuo, poder dar uns beijos em conhecidos no meio de uma festa até morar com 20 pessoas de quaisquer gêneros e orientações, transando com quem estiver a fim, criando filhos juntos e o que mais todos decidirem harmoniosamente.

Essas minhas experiências chegam perto do que, em inglês, descubro agora que o pessoal chama de comportamento ‘monogamish’

Então vá lá, por algum critério, eu já tinha feito algumas incursões em formas, hmmm, flexíveis de relacionamento. Eu já havia participado como a “de fora” de um ménage bem divertido; já tinha beijado amigas e amigos na mesma pista de dança que o meu marido (e dado um pequeno chilique quanto o vi beijando uma mulher que eu não conhecia) e pronto. Acho que essas minhas experiências chegam perto do que, em inglês, descubro agora que o pessoal chama de comportamento “monogamish” (algo como “mais ou menos monogâmico”), ou seja, aquele em que você é quase, quase estritamente monogâmico, mas abre umas exceções aqui e ali pra quebrar a rotina, e sempre só no campo sexual, jamais no romântico. Vamos fingir, por ora, que essa separação é 100% controlável, né?

O problema de começar a dar nomes para graus de abertura (ou de qualquer coisa que seja) em relacionamentos amorosos é que requer a teimosia de acreditar que o desejo é controlável, que os afetos são previsíveis e que sabemos exatamente quem somos e o que seremos na semana, no mês, no ano que vem. É um pouco como se definir heterossexual (ou bi ou homo): debates políticos e identitários à parte, é apenas um porre não reconhecer que amanhã eu posso me ver de quatro por um tipo que até ontem eu não beijaria nem por dinheiro.

Então, no meu caso, em retrospecto, eu e o André fomos caminhando, ao longo dos mais de 15 anos desde que começamos a namorar, para um acordo de não monogamia estrita. Mas contar isso assim, tão casualmente, esconde o processo meio brutal de efetivamente tomar essa decisão, de colocar as cartas na mesa e assumir os riscos (e reconhecer as vantagens, e planejar as descobertas também). E, nosso caso, foi um tanto dramático mesmo.

O motivo principal era a eliminação da ideia horrorosa de traição, com todo o seu subtexto de abandono, quebra de confiança…

Desde que eu vi um vídeo com depoimentos de casais em relacionamento aberto, uns anos atrás, comecei a pensar na beleza desse acordo. Era um programa espanhol, se não me engano, e me lembro particularmente de um casal (heterossexual) de quarenta e poucos anos, os dois bonitos de um jeito “normal”, falando abertamente sobre como ter relacionamentos (sexuais ou afetivos, mas breves) com outras pessoas tornou a relação entre eles mais alegre. A palavra era esta mesmo: alegre. E o motivo principal era a eliminação da ideia horrorosa de traição, com todo o seu subtexto de abandono, quebra de confiança… A gente passa a vida assistindo à mesma cena em novelas, filmes: a moça (ou o cara) dá uns beijos num terceiro, num lance de culpa confessa tudo ao parceiro, e ele responde, teatral e grave: “Ó, infiel, como poderei novamente confiar em você?”. Ai, que cafonice.

Não recomendo a ninguém abrir um relacionamento desse jeito. ‘Vamos abrir o casamento para eu beijar tal pessoa sem me sentir culpada?’

Fiquei com isso na cabeça, nesses termos, que não são propriamente afetivos, nem políticos, mas estéticos mesmo. Fui lançando a ideia, que parecia que jamais iria colar e não colou, por muito tempo, até que a questão se tornou mais urgente, e a crise se instaurou. Sou uma grande defensora de crises, uma grande instauradora de crises também. E nessa questão não foi diferente. Estávamos casados havia mais de dez anos, e sempre nos gabamos de ser o casal mais apaixonado em qualquer situação social (ainda somos), e até aquele momento a (minha) ideia do relacionamento aberto era razoavelmente teórica, pelo motivo simples de que não havia antes sentido uma vontade particular de estar com outra pessoa. Até que eu senti. E meti o pé na porta.

Não foi simples, e não recomendo a ninguém abrir um relacionamento desse jeito. “Oi, meu amor, tudo bem? Seguinte: quero beijar tal pessoa, vamos abrir o casamento para eu poder fazer isso sem me sentir culpada?”. Não pega bem, não é bonito, é injusto e brutal, e foi o que eu fiz. Numa noite em que eu estava particularmente feliz de estar com o meu marido, eu dei essa punhalada, um horror. Foram muitas semanas de conversa, quase nos separamos, eu descobri que nem queria tanto assim beijar tal pessoa, mas sim que eu precisava descobrir coisas, redefinir fronteiras entre nós dois – em certo sentido, queria materializar o risco. O risco que eu corro, o risco que ele corre. Porque a solidez amorosa é uma falácia, e ainda bem: porque o desejo não existe sem risco, não para mim. Em uma tarde bonita, quando a confiança havia sido reconstruída – não a confiança de que eu não desejaria mais ninguém, mas a de que eu queria fazer nosso casamento funcionar, com alegria –, e do nada, ele me perguntou: “Você ainda quer abrir o relacionamento? Então vamos tentar”. E estamos tentando, e está funcionando, e eu nunca o desejei tanto.

*Para preservar esse casamento feliz, a autora preferiu não se identificar • • • • • • • •  A imagem que ilustra essa matéria é uma cortesia do artista Marcelo Cipis e Galeria Bergamin e Gomide – Imagem Para Vaso Grego Contemporâneo 10 (da série Drops / from the Drops series), 2019. Acrílica sobre tela / Acrylic on canvas. 11 3/4 x 11 3/4 in. (30 x 30 cm). MCP-0123. / Fotografia: Ding Musa

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