Pandora e a sedução da esperança — Gama Revista
COLUNA

Maria Homem

Pandora e a sedução da esperança

Às vezes a vontade de ter esperança é tanta, mas tanta, que acreditamos piamente em quase qualquer discurso de transformação

22 de Dezembro de 2023

Não tem nada mais gostoso do que pegar uma folha de papel em branco e colocar ali nossos desejos para o futuro. Daqui pra frente, tudo vai ser diferente. E obviamente melhor.

Esse o sonho, sempre renovado, que projetamos sobre um espaço vazio. Podemos nomear esse espaço de página em branco, tábula rasa, ou mesmo ano novo. E assim desfrutamos de um momento de liberdade criativa radical: como me imagino sendo no próximo ano, na próxima década? Quem quero ser? Que vida quero viver? Com quem quero partilhar essa vida? Como quero ocupar meu tempo e ganhar meu sustento?

E assim seguimos, com rituais periódicos de esperança e imaginação. Cada um faz o seu no mínimo uma vez por ano – chama aniversário. E nós como humanidade refazemos juntos esse exercício em marcos simbólicos que, curiosamente, se apoiam no mesmo paradigma de ‘uma volta em torno do sol’. Feliz ano novo.

Não é assim que nos acariciamos e conseguimos sustentar mais um pouco o existir, que por vezes parece tão árido? Entre a labuta diária e nossos ritos de passagem, vamos equilibrando os afetos e as energias. Se a energia baixa e a bateria social derrete, é hora de, como o nome diz, renovação.

Sim. Precisamos de pausas poéticas.

Aprender a esperar – quem sabe pode ser uma virtude e não somente uma procrastinação sintomática

Um pouco antes do ano novo – e não por coincidência – a cristandade estabelece o Natal como nascimento de Jesus. E vemos por toda a parte representações de presépio: pai, mãe, filho e um pedacinho da comunidade. É a imagem ancestral para expressar nossa fé de construir algo (dessa vez, juro) diferente a partir de cada novo ser que vem à vida. O que não deixa de ser um ritual simbólico de renovação.

Afinal, o nascimento de uma criança traz sempre consigo um corte. Uma criança, um ‘novo ser’ não é também o máximo de potencialidade? Qual melhor ‘objeto’, qual melhor página em branco sobre a qual depositar nossos sonhos? Cada criança carrega esse peso. Cada filho carrega essa carga que recebe de nós e cada um de nós recebeu essa incumbência ao nascer. A cada um cabe descobrir o que recebeu e o que está transmitindo na sua história – esse é inclusive um dos trabalhos da análise.

Às vezes a vontade de ter esperança é tanta, mas tanta, que acreditamos piamente em quase qualquer discurso de transformação. Quanto mais louco e bombástico, melhor. Do jeito que está não dá mais, juro. Basta. Então vamos subverter tudo. Vamos votar nesse cara que parece diferente de tudo, tão “novo”, tão absurdo que – magia – dessa vez as coisas vão ser diferentes. E sim, para melhor. Lembra? Sempre essa a fantasia.

Hoje é um novo dia de um novo tempo que começou. As alegrias serão de todos, é só querer. Todos os nossos sonhos serão verdade. O futuro já começou.

Hoje a festa é sua, hoje a festa é nossa, é de quem quiser e de quem vier.

Incrível né?

Mal sabíamos nós que a esperança podia ser algo tão perigoso. Epimeteu falou para Pandora não abrir a caixa com os males do mundo. Nossos mitos inúmeras vezes repetem a mesma história: a gente poderia ter evitado o mal mas a curiosidade humana é incontrolável. Sempre estraga tudo. Não é mesmo, Eva? Não é mesmo, Pandora? (Essas mulheres viu…) A esperança era o último dos males da caixa. Pergunta: o que ela estava fazendo ali?

Depois da ânsia da juventude, às vezes entendemos que as coisas têm seu tempo. Elas simplesmente não são instantâneas

Por que a esperança pode ser um mal?
Por que ela nos faz ficar esperando um milagre?
Por que ela nos coloca sentados, e portanto passivos, esperando a morte da bezerra? Talvez.

Talvez para nos defender disso tenhamos criado um dos mais sintéticos (e interessantes) imperativos morais: ora et labora. Ou seja, ore, peça, espere, mentalize, acenda velas, tudo o que você quiser. Mas também labore, faça, realize. Arregace as mangas e trabalhe na direção do seu desejo. Ora et labora: ajude os deuses a te ajudar.

Eu perguntaria então: qual o sentido da sua esperança?

Há esperas mais passivas e mágicas, que nos colocam na mão do outro ou de seitas delirantes e mágicas. E que fatalmente vão dar errado.

Mas pode haver sabedoria na trama do jogo entre ativo e passivo. Até nomeamos: a virtude da espera. Aquela que tem a ver com nosso duro aprendizado sobre o tempo das coisas. Depois da ânsia da juventude, às vezes entendemos que as coisas têm seu tempo. Elas simplesmente não são instantâneas, como às vezes teimamos em desejar. A magia do instante pirlimpimpim. Não, as coisas têm sua própria temporalidade. Então é bom saber esperar. Aprender a esperar – quem sabe pode ser uma virtude e não somente uma procastinação sintomática.

Ou quem sabe esperar seja um spin off mais humilde da virtude da esperança. Não magia delirante, mas da ordem dos desejos amenos. Que são sempre os mais profundos, como ter saúde. Quer coisa mais milagrosa? (Sim, até hoje me surpreendo com o milagre da vida). Como ter um novo amor no novo ano. Ou de ter um novo emprego no novo ano, com mais sentido. Ou de ter um pouco menos de dívida. Que seja.

Feliz natal, receba o menino que renasce.

E próspero ano novo. Que você se torne tudo o que irá escrever nos espaços em branco que se abrirem diante de você.

Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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