Fernando Henrique
Piedade e terror
É pela Covid-19 que a classe operária, a carne mais barata do mercado, fica sem escolha e é sugerida de bandeja para melhorar a economia
Era 2017, ano de eleição, Emmanuel Macron e Marine Le Pen disputavam a presidência, um duelo entre o centro e a extrema direita. Eu morava em Paris e trabalhava a todo vapor na cobertura jornalística do que seria a nova fase do país e do mundo. Foi um ano “atípico” — talvez a palavra que caiba aqui é “duro” mesmo.
Minha vida, naquele momento, era cercada pelo medo. Minha cabeça ainda guardava, dois anos depois, as imagens do massacre na casa de show Bataclan, onde uma amiga perdeu a vida. Morte e dor. Muitas perguntas e poucas respostas.
Decidi (ou decidiram por mim) tirar férias e o destino foi a Espanha para ver as pinturas de Pablo Picasso, artista que marcou o século XX. Em suas telas, o terror, o medo, o pânico, a deformidade, a morte. Naquele momento, parecia importante me confrontar com o tema.
No Museu Reina Sofía, em Madri, me deparo com a mostra Piedad Y Terror en Picasso – El Camino a Guernica. Confinado ali naquele espaço, por escolha, eu vi muita coisa. O Picasso, em meados de 1920, que leva para o exterior seus monstros interiores; observo a obra intitulada “Nu em Pé Junto ao Mar” (1929) e “Figuras à Beira do Mar” (1931). Ali, caminhando, vi as deformidades da minha vida nos personagens.
Ao me aproximar de “Guernica”, o motivo da minha viagem, o quadro mais famoso do mundo, uma sensação indecifrável. A monstruosidade do que é uma guerra civil, de fato, eu nunca vivi. Porém, de alguma maneira, compartilhei o sentimento de fazer parte: estava ali com Picasso.
Hoje, anos depois, aqui nos Estados Unidos da América, em ano de eleição com a disputa entre o atual presidente Donald Trump, do partido Republicano, e o candidato democrata Joe Biden, lembrei do período de dor em 2017. Testemunho, junto com o planeta um horror, a pandemia do coronavírus, a Covid-19, que fez tudo parar, impactou as maiores economia do mundo.
A doença não mata por raça; o que nos mata, mais uma vez, é a desigualdade
Segundo a Universidade Johns Hopkins, globalmente já passam de 2.420.439 os casos confirmados de infecção pelo vírus. O Estado de Nova York, considerado epicentro da doença aqui nos Estados Unidos, lidera o ranking com o maior número de mortos, mais de 14.451. Os números são atualizados diariamente aqui.
No último 8 de abril, dados oficiais mostram para quem o coronavirus é mais letal: 34% dos mortos pela Covid-19 são hispânicos, apesar de só representarem 29% da população nova-iorquina. Os afro-americanos, também são golpeados — eles constituem 28% dos mortos, e seu peso na população da cidade é de 22%. Essas são algumas das cifras do Departamento de Saúde da cidade, pela primeira vez discriminadas por grupos étnicos.
A doença não mata por raça; o que nos mata, mais uma vez, é a desigualdade. O fato é que os mais pobres, os negros, e por aqui também os Latinos, não podem cumprir o distanciamento social como exigido pelo governo e se expõem cotidianamente para sobreviver economicamente. Neste caso, o resultado é pagar com a vida.
Se não é por bala, será por fome. Senão, por fome, pela falta de empatia. Agora, é pela Covid-19 que a classe operária, a carne mais barata do mercado, fica sem escolha e é sugerida de bandeja para melhorar a economia. A minha pergunta é: até quando?
É tempo de repensar tudo, a ferida que volta a ser aberta. É um buraco sem fim. O governador de Nova York, Andrew Cuomo, em uma de suas entrevistas coletivas diárias — ressaltou os numero da cidade de Chicago, onde os negros representam 30% da população. Um total de 70% deles sofrem com as mortes pela pandemia. Me doeu ainda mais.
O fechamento ao exterior fez uma abertura ao interior. Abrir as portas para a tristeza me trouxe uma inquietação: a prática versus a escolha de uma prática. Um bilionário americano, me emocionou dia desses. Ele fez uma doação de 28% da sua fortuna para os esforços de combate aos efeitos do coronavírus, o que sem dúvida vai salvar muita gente. Agora, o que me fez repensar mesmo foi: ele tem essa opção. Mas e os outros? Negros e latinos devem trabalhar para que a economia não fique ainda pior? A opção é entregar suas vidas?
Mais um dia que adormecerei sem a resposta.
Fernando Henrique é jornalista e produtor cultural, mestre em Economia da Arte e em Projetos Culturais para Espaços Públicos pela Sorbonne, na França. É correspondente da CNN Brasil em Nova York
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