DNA ladrão — Gama Revista
COLUNA

Maria Homem

DNA ladrão

Você só quer ganhar mais, e mais. E gasta sua energia arquitetando como. Você rouba o dia inteiro todos os seus clientes e amigos e inimigos. É a vida

24 de Agosto de 2023

Esta semana fui comprar um galão de tinta epoxi numa cor tão específica que tinha que fazer sob medida na máquina. Nada muito difícil. Afinal, a técnica inevitavelmente evolui — mesmo que para exterminar — e as máquinas são uma espécie de robô que faz a combinação certa do que você precisa, no caso uma base com quantidades exatas de corantes primários. Aí você consegue o Cabaré Desejo ou o Mar Vermelho (juro).

O preço era quase 600 reais. Por uma latinha de 3l de tinta? Abusivo. Fui em outra loja: mais de 1000. O mesmo galão da mesma tinta na mesma cor. Falei: é mesmo? Seu vizinho cobra metade. Ele: deixa eu ver. Mostrei o orçamento do concorrente. Ele fez e refez as contas e no final conseguiu cobrir: 509. Tentava justificar com os clichês do ‘teve reajuste’ e ‘ganhar a cliente’.

Por que gastei dois parágrafos para contar essa história? Porque isso é o Brasil.

Você podia ler o título da coluna e imaginar que estou falando de Bozo ladrão — e a cascata de provas que tem vindo à tona. Ou Lula ladrão. Ou Congresso ladrão. Grandes corporações cínicas e ladronas. Seu vizinho ladrão. Ou todos aqueles feios, sujos e malvados (tá, pode ser também os ricos e limpos) que te roubam.

Cansaço imenso de todas as vezes que temos que roubar ou trabalhar para não sermos roubados tanto

Entendi com essa história, mais uma vez, o tamanho do buraco: as coisas não tem um valor nem um princípio. Você só quer ganhar mais, e mais. E gasta sua energia arquitetando como. Você rouba o dia inteiro todos os seus clientes e amigos e inimigos. É a vida.

Se você ganha em cima de algum otário, ótimo. Se você é o otário, pena. Na próxima você compensa.

Saí de lá cansada com o esquema que inventamos para as trocas entre os humanos. Sempre com tretas, acordos, subsídios e ‘políticas’. Cansaço imenso de todas as vezes que temos que roubar ou trabalhar para não sermos roubados tanto.

Pena de mim e de você por todas as vezes em que, por cobiça ou cansaço, pegamos uma coisinha a mais do que tinha sido o combinado, às vezes até pactuado com a quase risível força da lei.

O sistema está ficando cada vez mais perverso? Perverso do tipo ladrão, sim. Pequenas ou médias contravenções, do tipo não parar no sinal de trânsito, andar na contramão e por aí afora, sim também. Muitas vezes vejo veículos naturalizando a falência da lei e penso, angustiada: um dia morre. Ou perverso do tipo assassino: apagar pessoas sob forma de arquivos, provas, obstáculos. Sim, porque a perversão está intrinsicamente ligada à violência.

Diante disso, uma saída mental que nos ocorre – como a que ganhou força nos anos 2010 – vai na linha “ah é tudo ladrão e delinquente, então sou antissistema: quero um salvador da pátria com mão de ferro pra botar ordem no barraco”. Aquela história: vai ter o cara “puro” que vai deixar a coisa “limpa”. Pureza, ordem, limpeza: a sagrada trindade autoritária (fascista, diriam alguns).

O que existe é somente a vida e sua rotina pequena e trabalhosa

E o método é o seguinte: destrói tudo. Tudo, para reconstruir novo e limpo depois. Mas o gozo da destruição é tao forte que esse “depois” da reconstrução fica para bem depois mesmo, próximo ao nunca.

Pois bem, para os que não sabiam, toda essa narrativa é uma ficção. Em primeiro lugar, como diria Lacan, não existe metalinguagem. Não existe metassistema, ou um lugar ‘fora do sistema’. O sistema que temos ou qualquer outra forma que busque se instaurar e se fazer sistemática no futuro, é sempre parte da vida. Não tem o ‘fora’ em relação a um ‘dentro’ no qual viveríamos.

Essa é no fundo uma das mais antigas construções da nossa mente: a fantasia do escape transcendental. Que seja céu (para mim) ou inferno (para os inimigos); que seja algo revolucionário ou nostálgico, tudo é ficção. O que existe é somente a vida e sua rotina pequena e trabalhosa: as tais instituições e suas leis, combinados, erros e acertos. E as milhões de pessoas que trabalham todos os dias para fazer a grande roda girar.

Voltando ao nosso DNA ladrão. O primeiro passo para enfrentar esse problema é parar de sonhar com alguma outra realidade, seja a do país do futuro (neoliberal ou pós-comunista), seja a de um passado (normalmente atrelado a alguma colonização mágica e evoluída, do tipo protestante, holandesa ou qualquer coisa clarinha). O segundo passo é desinflar o delírio de que estamos do lado do bem e que devemos exterminar o outro que, ele sim, é o problema.

Aí quem sabe estaremos em condição de enfrentar com estratégias mais adultas o problemão que é viver num lugar em que o sintoma do roubo se expressa da forma mais contundente e impune. Estamos no país da gambiarra onde você engana e rouba porque já se sente enganado e roubado. E assim segue o baile. Por exemplo, pra passar a lei de uma reforma mais equitativa, você precisa comprar esse e aquele. Você tem que roubar até pra tentar melhorar o jogo.

Cansativo não? Espero que não demore muito para que a gente chegue à conclusão de que seria mais tranquilo viver não muito longe do combinado da lei e de um mercado mais regulado e justo. Por exemplo, eu preferiria pagar os 1000 reais na minha latinha de tinta se esse fosse o preço. Eu preferiria não ter que ficar rodando a cidade, perdendo tempo e produtividade para escapar da picaretagem generalizada que instauramos como forma de vida.

Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação