Maria Homem
DNA ladrão
Você só quer ganhar mais, e mais. E gasta sua energia arquitetando como. Você rouba o dia inteiro todos os seus clientes e amigos e inimigos. É a vida
Esta semana fui comprar um galão de tinta epoxi numa cor tão específica que tinha que fazer sob medida na máquina. Nada muito difícil. Afinal, a técnica inevitavelmente evolui — mesmo que para exterminar — e as máquinas são uma espécie de robô que faz a combinação certa do que você precisa, no caso uma base com quantidades exatas de corantes primários. Aí você consegue o Cabaré Desejo ou o Mar Vermelho (juro).
O preço era quase 600 reais. Por uma latinha de 3l de tinta? Abusivo. Fui em outra loja: mais de 1000. O mesmo galão da mesma tinta na mesma cor. Falei: é mesmo? Seu vizinho cobra metade. Ele: deixa eu ver. Mostrei o orçamento do concorrente. Ele fez e refez as contas e no final conseguiu cobrir: 509. Tentava justificar com os clichês do ‘teve reajuste’ e ‘ganhar a cliente’.
Por que gastei dois parágrafos para contar essa história? Porque isso é o Brasil.
Você podia ler o título da coluna e imaginar que estou falando de Bozo ladrão — e a cascata de provas que tem vindo à tona. Ou Lula ladrão. Ou Congresso ladrão. Grandes corporações cínicas e ladronas. Seu vizinho ladrão. Ou todos aqueles feios, sujos e malvados (tá, pode ser também os ricos e limpos) que te roubam.
Cansaço imenso de todas as vezes que temos que roubar ou trabalhar para não sermos roubados tanto
Entendi com essa história, mais uma vez, o tamanho do buraco: as coisas não tem um valor nem um princípio. Você só quer ganhar mais, e mais. E gasta sua energia arquitetando como. Você rouba o dia inteiro todos os seus clientes e amigos e inimigos. É a vida.
Se você ganha em cima de algum otário, ótimo. Se você é o otário, pena. Na próxima você compensa.
Saí de lá cansada com o esquema que inventamos para as trocas entre os humanos. Sempre com tretas, acordos, subsídios e ‘políticas’. Cansaço imenso de todas as vezes que temos que roubar ou trabalhar para não sermos roubados tanto.
Pena de mim e de você por todas as vezes em que, por cobiça ou cansaço, pegamos uma coisinha a mais do que tinha sido o combinado, às vezes até pactuado com a quase risível força da lei.
O sistema está ficando cada vez mais perverso? Perverso do tipo ladrão, sim. Pequenas ou médias contravenções, do tipo não parar no sinal de trânsito, andar na contramão e por aí afora, sim também. Muitas vezes vejo veículos naturalizando a falência da lei e penso, angustiada: um dia morre. Ou perverso do tipo assassino: apagar pessoas sob forma de arquivos, provas, obstáculos. Sim, porque a perversão está intrinsicamente ligada à violência.
Diante disso, uma saída mental que nos ocorre – como a que ganhou força nos anos 2010 – vai na linha “ah é tudo ladrão e delinquente, então sou antissistema: quero um salvador da pátria com mão de ferro pra botar ordem no barraco”. Aquela história: vai ter o cara “puro” que vai deixar a coisa “limpa”. Pureza, ordem, limpeza: a sagrada trindade autoritária (fascista, diriam alguns).
O que existe é somente a vida e sua rotina pequena e trabalhosa
E o método é o seguinte: destrói tudo. Tudo, para reconstruir novo e limpo depois. Mas o gozo da destruição é tao forte que esse “depois” da reconstrução fica para bem depois mesmo, próximo ao nunca.
Pois bem, para os que não sabiam, toda essa narrativa é uma ficção. Em primeiro lugar, como diria Lacan, não existe metalinguagem. Não existe metassistema, ou um lugar ‘fora do sistema’. O sistema que temos ou qualquer outra forma que busque se instaurar e se fazer sistemática no futuro, é sempre parte da vida. Não tem o ‘fora’ em relação a um ‘dentro’ no qual viveríamos.
Essa é no fundo uma das mais antigas construções da nossa mente: a fantasia do escape transcendental. Que seja céu (para mim) ou inferno (para os inimigos); que seja algo revolucionário ou nostálgico, tudo é ficção. O que existe é somente a vida e sua rotina pequena e trabalhosa: as tais instituições e suas leis, combinados, erros e acertos. E as milhões de pessoas que trabalham todos os dias para fazer a grande roda girar.
Voltando ao nosso DNA ladrão. O primeiro passo para enfrentar esse problema é parar de sonhar com alguma outra realidade, seja a do país do futuro (neoliberal ou pós-comunista), seja a de um passado (normalmente atrelado a alguma colonização mágica e evoluída, do tipo protestante, holandesa ou qualquer coisa clarinha). O segundo passo é desinflar o delírio de que estamos do lado do bem e que devemos exterminar o outro que, ele sim, é o problema.
Aí quem sabe estaremos em condição de enfrentar com estratégias mais adultas o problemão que é viver num lugar em que o sintoma do roubo se expressa da forma mais contundente e impune. Estamos no país da gambiarra onde você engana e rouba porque já se sente enganado e roubado. E assim segue o baile. Por exemplo, pra passar a lei de uma reforma mais equitativa, você precisa comprar esse e aquele. Você tem que roubar até pra tentar melhorar o jogo.
Cansativo não? Espero que não demore muito para que a gente chegue à conclusão de que seria mais tranquilo viver não muito longe do combinado da lei e de um mercado mais regulado e justo. Por exemplo, eu preferiria pagar os 1000 reais na minha latinha de tinta se esse fosse o preço. Eu preferiria não ter que ficar rodando a cidade, perdendo tempo e produtividade para escapar da picaretagem generalizada que instauramos como forma de vida.
Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.
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