Fernando Luna
Não há saídas
Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre praia de paulistano, Titãs no túnel do tempo, dois humoristas unidos por 55 anos de diferença e uma casinha de joão-de-barro valendo R$ 6 mil
Não há saídas/ só ruas viadutos/ avenidas
Régis Bonvicino, 1983, Antologia Profética
Se antes o paulistano invadia praias pelo Brasil afora, agora as praias vão invadir São Paulo.
Mas não são praias como as que você conhece – duvido que cariocas e baianos queiram passar férias nelas. Desconfio que tudo começou com o beach tennis.
Mesmo não praticado numa “beach” e sendo um arremedo de “tennis”, ganhou as ruas, viadutos e avenidas de São Paulo – uma saída até telúrica, que não tem espaço no poema claustrofóbico de Régis Bonvicino.
Isso abriu a caixa de areia de Pandora.
O fato de a metrópole estar a 70 quilômetros do mar deixou de ser um obstáculo. Logo teremos, à beira da Marginal Pinheiros, o mais democrático dos acidentes geográficos.
Com dois detalhes importantes: essas praias não serão exatamente democráticas, muito menos acidentais. Basta ver os anúncios dos “beach clubs” em construção.
Um deles avisa, orgulhoso, ficar a “15 minutos da Faria Lima” – isso certamente não é acidental, embora eu, particularmente, prefira praias um tanto mais distantes da Faria Lima.
Além de toneladas de areia branca e uma piscina de ondas artificiais, oferece “daily bar”, “night club”, “coworking”, “pet space”, “playground”, “fitness” e mais uma batelada de coisas que não entendi porque tão escritas em português.
Não foi confirmada a venda de Globe Biscuit e Lion Mate no local.
O outro reclame se gaba da vista pra ponte Estaiada. Esse negócio de coqueiral, Morro Dois Irmãos, mata atlântica e horizonte é superestimado. Nada como relaxar diante de concreto e cabos de aço.
Com títulos a partir de R$ 600 mil, serão mais à prova de povo que a praia da Baleia, no litoral norte do estado – há anos cercada por grades e condomínios. Nem a Noruega terá praia com tanta gente branca e short Vilebrequin – a versão litorânea e estampada daqueles coletes de gominhos.
A próxima fronteira imobiliária? Aproveitar o novo plano diretor pra transformar as colinas urbanas em estações de esqui – Pacaembu pros iniciantes e pista preta em Perdizes. Se o Havaí é aqui, por que não Courchevel?
O pulso ainda pulsa
Arnaldo Antunes, 1989
Tava com medo de destruir minha adolescência indo ao show dos Titãs nesse domingo.
Eu tinha uns 13 anos quando ouvi “Sonífera Ilha”. Vi o Arnaldo no programa do Chacrinha puxar uma antena de tevê das costas enquanto cantava “Televisão”. Escutei “Cabeça Dinossauro” inteirinho dezenas de vezes, fone de ouvido ligado no 3 em 1 pra não atrapalhar quem via a novela.
De lá pra cá, aconteceu muita coisa – com eles e comigo. Encontros e desencontros, idas e vindas, amores e desamores.
Mas a lembrança dessas canções ficou intacta. A memória das sensações provocadas por aquelas músicas, reverberando a tempestade hormonal do meu corpo de moleque, tava protegida como uma cápsula do tempo.
Parecia uma temeridade mexer nisso.
Seria como voltar a um lugar mágico da infância, só pra descobrir que não tinha nada de extraordinário ali – além da infância. Arruinar essas reminiscências por uma turnê caça-níqueis? Francamente.
Ainda encarei um mau presságio.
Poucas horas antes, almocei num lugar com música ao vivo. Foi sem querer, juro – entre salmonela e violão num restaurante, fico com a bactéria.
Tocaram justamente “Epitáfio”, a mais piegas, a mais erroneamente atribuída a Jorge Luis Borges.
Ignorei tudo isso e fui lá, felizmente.
Não encontrei uma banda fazendo cover de si mesma, fingindo que ainda tava nos anos 1980. Ao contrário, vi uma celebração de tudo ao mesmo tempo agora – com destaque pro “agora” e seus novos dilemas.
Telões gigantescos escancaravam, nos rostos, as marcas da jornada até aqui.
“Nome aos Bois” incluiu Bolsonaro entre Garrastazu, Stalin e Erasmo Dias.
Branco falou da superação do câncer na garganta, antes de cantar uma metalinguística “Tô cansado”.
Fromer tava bem representado pela filha Alice.
Arnaldo usava duas pulseiras indígenas. E uma enorme bandeira LGBT+ encerrou 2h30 de karaokê coletivo.
Olhando de longe, aqueles caras de 60 e poucos anos parecem ter honrado seus melhores delírios juvenis. A plateia, inevitavelmente, também embarcou num balanço existencial – muita gente, aposto, com saudade de si mesma.
Não é tarde demais para buscar um novo mundo
Alfred Tennyson, 1842
Domingo fui ao Pacaembu. Em vez de futebol, vi uma craque e uma revelação do desenho de humor brasileiro.
Se o velho e violento esporte bretão é um dos pilares da identidade nacional, os cartunistas se encarregam de desconstruir essa identidade, apontando seu ridículo, suas contradições e suas falhas de caráter.
Laerte, 72 anos, e Pedro Vinicio, 17, jogam esse jogo como poucos. Eles se encontraram pela primeira vez numa mesa d’A Feira do Livro.
São, tecnicamente, 55 anos de diferença.
Mas daria pra fazer uma outra conta, no meio das muitas vidas que cabem numa vida: como a Laerte, essa mulher genial, só apareceu publicamente em 2010, proponho reabrir a contagem e cravar que ela, cartunista em flor com cinco décadas de carreira, mal completou 13 anos.
Enquanto em suas tirinhas o Hugo se transformava na Muriel, ela botava as manguinhas e as pernocas de fora, fazendo sua transição de gênero. O trabalho mudou junto. Personagens como os Piratas do Tietê deram lugar a desenhos meio filosóficos, meio surrealistas e inteiramente novos.
(Virou uma trend nas redes comentar embaixo de seus cartuns: “Não entendi”, “Me explica, Laerte” e por aí vai. Vale seguir o conselho da própria, que desenhou uma esfinge diante de uma taça de vinho e escreveu ao lado: “Decifra-me com moderação”.)
Novo, novíssimo, também é o humor do Pedro Vinicio, a segunda pessoa mais popular de Garanhuns, no agreste pernambucano – Lula precisa se mexer, o desenhista saltou de meia dúzia de amigos pra 577 mil seguidores em apenas dois anos.
Com um estilo que nasceu pronto, inclusive pra virar meme, ele combina traços deliberadamente infantis, feitos a dedo na tela de um aplicativo qualquer de celular, com frases que escancaram nossa própria vulnerabilidade – Laerte lembrou do Millôr.
Como um e outro renovam seus ofícios numa colisão entre cultura pop e erudita – Laerte cresceu ouvindo Beethoven, Pedro cita Cildo Meireles –, saco aqui o mais vitoriano dos poetas ingleses, Alfred Tennyson: “Nunca é tarde demais para procurar um novo mundo”. Nem aos 17, nem aos 72 anos.
Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa
Manuel António Pina, 1974
Uma casinha de joão-de-barro aqui no bairro tá valendo uns 6 mil reais.
Essa que vi ontem, durante uma caminhada pelas redondezas, custaria facilmente o dobro: era um duplex, um pavimento engenhosamente construído em cima do outro.
Cheguei à avaliação partindo do preço de mercado: 20 mil reais o metro quadrado, em lançamentos imobiliários por estas bandas.
Aí bastou ajustar esse valor à área de cerca de 30 centímetros de diâmetro do seu ninho de arquitetura vernacular – o bicho felizmente ainda não usa porcelanato no acabamento.
A ampliação do plano diretor de São Paulo nem foi votada na câmara municipal, mas o emplumado incorporador não perdeu a oportunidade de verticalizar seu empreendimento.
Seria um animal especulador, investindo numa unidade extra, com um olho nos ganhos futuros com a valorização do imóvel, outro na renda do aluguel reajustado acima da inflação?
Quem sabe, uma ave startupeira? O térreo na verdade é um forno de barro, fachada ativa onde ela opera uma dark kitchen. Vai escalar o negócio, vender pra um fundo de venture capital e virar unicórnio – que também voa e não sofre com estilingue.
Ou nada disso. Talvez apenas dois casais amigos realizando o sonho de viver em comunidade, um Melrose Place aboletado num galho espaçoso de tipuana, um sítio dos Novos Baianos na copa da árvore.
Só sei que ao rés-do-chão da pequena rua onde moro, isso é fichinha: tão brotando três espigões aqui. Pelos preços anunciados, o adensamento urbano chega sem nenhuma habitação de interesse social – apenas habitação de interesse high society.
Aprendi num documentário que, no tempo dos nossos pais, o sonho da casa própria custava o dobro da renda anual – e hoje custa seis vezes mais. São números dos Estados Unidos, não encontrei uma versão brasileira. Mas aposto que é igual ou pior.
Tem comprador pra tanto apartamento? Cidade pra tanto prédio? Teto pra tanta gente? E o mais importante: tem um sorriso pra onde voltar, como na imagem do português Manuel António Pina, em “Amor como em casa”?
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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