Um camponês, um hippie, um gênio — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Um camponês, um hippie, um gênio

O vinho é também quem o faz. E René Barbier é responsável por alguns dos vinhos mais importantes do Priorato, na Espanha, enquanto toca projetos pouco convencionais e se preocupa com o aquecimento global

05 de Maio de 2023

Quando se ouve por aí que o vinho é muito mais que uma bebida parece afetação, mas me atrevo aqui a defender um pouco a ideia de que ele é sim muita coisa. Para o vinho ser legal mesmo, ele tem que ser também cultura, história, geografia, clima, solo e pessoas. E é nesse ponto que eu quero focar: o vinho é também quem o faz. É muito mais fácil se apaixonar por ele quando a gente se apaixona pelo produtor, por sua filosofia, suas crenças, sua ética, o jeito como ele ou ela faz, entende e explica o vinho.

Por sorte, neste universo, esses personagens estão por todos os lados: são os estudiosos do solo que, com suas descobertas fantásticas, conseguem mudar tudo; são os que defendem mais cuidado com os vinhedos e menos adição de qualquer coisa que não seja uva no vinho; são os que pensam no futuro na terra e no presente para preservá-la. Poder visitar essas pessoas, ver como vivem e trabalham, como tratam os vinhedos, pensam sobre a agricultura, o que fazem da natureza e como produzem as bebidas muda na sua cabeça o que você bebe. A bebida acaba ficando mais “concreta” quando fica claro que é um produto agrícola, fruto do trabalho de pessoas reais; e mais etérea também, porque representa fisicamente filosofias inteiras.

Na Espanha, na região da Catalunha, encontrei um desses grandes personagens, René Barbier filho. Ele toca a produção da vinícola Clos Mogador, uma das fundadoras do Priorato. Nos anos 80, a região seca, montanhosa e pedregosa na província de Terragona, noroeste da Espanha, a duas horas de carro de Barcelona, não estava no mapa dos grandes vinhos do mundo. Ali, havia videiras desde pelo menos o século 12, mas elas eram usadas pelos parcos habitantes locais apenas para consumo próprio. Uma revolução se deu nos anos 1990, quando cinco pioneiros entenderam o potencial daquela terra, se mudaram para lá e fundaram as vinícolas (quase todas chamadas “Clos” alguma coisa) que em menos de uma década deram ao Priorato outro predicado.

O vinho fica mais ‘concreto’ quando está claro que é um produto agrícola, fruto do trabalho de pessoas reais

René Barbier pai era um desses cinco pioneiros e ficou conhecido por seu trabalho com Garnacha e Carignan, uvas que já estavam ali em vinhas velhas recuperadas por ele. O Priorat faz vinhos concentrados por definição e terroir (clima desértico) e alcoólicos graças às suas castas primordiais. E, naquela época, celebrava-se a potência, o que veio muito a calhar. Mas hoje o cenário mudou, o que se quer é menos álcool e mais elegância e este é apenas um dos desafios de Barbier filho.

René Barbier Jr. e o filho Christian na vinícola do Priorato  Reprodução Instagram

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O primeiro texto que escrevi sobre vinho na vida foi de outro produtor do Priorato, outro dos pioneiros, Álvaro Palacios. Ele havia sido eleito o homem do ano (era 2015) pela revista inglesa Decanter, uma das principais publicações neste mercado, e me concedeu uma bela e longa entrevista.

Foi uma estreia de que me orgulho e que teria sido comemorada in loco em 2019, se eu tivesse lido um email que parecia um aviso de pauta até o fim: era na verdade um convite para visitar a região e provar os vinhos feitos lá naquele ano. Carreguei essa frustração comigo até este ano, quando fui convidada a visitar algumas regiões da Espanha. Pedi pra mudar a data de ida para alguns dias antes, marquei férias e uma ida ao Priorato, afinal, esse trauma tinha que ser superado.

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Cheguei à sede da Clos Mogador, numa cidade chamada Gratallops, que tem 226 habitantes, às 10h30. Minutos depois, Barbier Jr. adentra a sala de espera da vinícola, me comprimenta, me alerta que está com um jet lag terrível, e fala em um espanhol mais rápido que a luz “vamos dar uma volta?” Subo em sua caminhonete e rodamos em velocidade 10 km/h enquanto ele fala a 100 km/h. Entre minha confusão mental para ouvir e entender tudo o que ele diz e anotar, enquanto vejo o que ele me mostra pela janela, começo a entender que aquele cara é um camponês, um hippie e um gênio ao mesmo tempo.
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Os vinhos da Mogador são excelentes e caríssimos, como são todos os vinhos do Priorato. É uma terra difícil de ser cultivada, é íngreme e desértica. Essas características levam a muitos problemas. O terreno inclinado não permite máquinas e pede mão de obra, que no local é escassa (lembrando, 226 habitantes na cidade onde está localizada). A falta de chuvas pede rega, mas isso nunca foi bem visto por ali e, de toda maneira, nem tem água no local mesmo (será que por isso apenas 226 habitantes em Gratallops?).

Entre uma curva e outra, Barbier me conta que o irmão Christian, que cuida do campo, quer fazer corredores verdes para promover mais biodiversidade no local. Ele ama a ideia, mas se preocupa que, com a falta de água, as plantas acabem competindo entre si e as uvas sofram. Está cada vez mais desértico, as sequillas não param, o aquecimento global é o maior dos problemas.

Com isso, me fala sobre a transformação dos vinhos da região: o aquecimento global é também um vilão para o perfil de vinhos que o mundo quer. Com o que o terroir entrega ali é uma equação difícil chegar a essa elegância, mas não impossível. Admira o trabalho do pai, mas hoje faz diferente e deixou a madeira quase totalmente para lá.

Com total franqueza, conta que já passou por duas crises e que já não gostou dos vinhos que fez. Achei completamente louco um produtor de vinhos que custam entre R$ 700 e R$ 1,4 mil no Brasil fazer esse tipo de declaração; é quase um sincericídio. Mas é importante dizer que ele declarou na sequência que hoje está sim contente com a sua produção, embora não com os preços que eles custam. Com o que ele investe para fazer os vinhos, com os custos de produção, no entanto, não tem muito o que fazer…

Há um certo clima hippie em tudo o que diz respeito à família Barbier

Não parece conversa pra boi dormir não, não vi luxo por ali. O pai mora onde estão os vinhedos, e o irmão idem, em um pequeno trailer estilizado. Há um certo clima hippie em tudo o que diz respeito à família Barbier. Os filhos de René Jr., por exemplo, não estudam na escola da cidade vizinha, Falset, onde ele e a companheira, Sara Perez, outra produtora importante da região, moram. Junto a algumas famílias amigas, eles mantêm uma pequena escola comunitária, onde estudam os dois filhos mais novos. Os dois mais velhos já passaram por lá e agora estão em cursos universitários que viajam o mundo. Se vão voltar ao campo, ainda é um mistério.

Até lá, Barbier e a companheira vão tocando parte do Priorato. Sara Perez é outra personagem fantástica, também segunda geração dos fundadores da região (o pai fundou a Mas Martinet) é mais radical que ele no que diz respeito à pureza dos vinhos e é um motor de experimentação. Juntos, os dois têm vários outros projetos em que testam mais e mais coisas diferentes. No Brasil, pode-se encontrar um deles, o Vênus la Universal.

São esses os projetos que mais o animam, percebo. René está encantado com o movimento do vinho natural, com sua falta de regras, com o “tudo é possível”. Está testando um rosé bem escuro com passagem por madeira, claretes de uvas autóctones, brancos oxidados e gordos, tintos que são um suquinho. “Natural é uma filosofia, não é um estilo”, ele diz, lembrando que aqui, sim, vale tudo.

Para um hippie, parece perfeito.

Saca essa rolha

PARA CONHECER SARA PEREZ
Infelizmente não tive a chance de conhecer Sara Perez, do Mas Martinet, mas enquanto viajava de carro de Barcelona de Gratallops ao Priorato ela me acompanhou no podcast Wine for Normal People. Vale a pena ouvir a entrevista em que ela conta sobre a criação da região como origem de vinhos finíssimos, as transformações pelas quais vem passando e suas crenças sobre o vinho natural.

UMA BOA DICA DE VIAGEM
Se tiver chance de ir a Barcelona, dê um jeito de ir ao Priorato e tente marcar um jantar no restaurante e vinoteca La Bacchanal, que fica em Falset. Eles vendem alguns dos grandes vinhos do mundo por peso. E estou falando em grand crus e algumas raridades. Também vale pedir uma boa garrafa de Priorato in loco.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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