Marcello Dantas
Vidências e evidências
Nossos celulares sabem onde estivemos, em companhia de quem, a direção que estávamos e com quem nos comunicamos no percurso
Há um ditado que diz “a evidência é maior que a verdade”. Essa declaração reflete um fato essencial sobre a natureza da evidência e como ela pode moldar a nossa compreensão de realidade.
Evidência pode ser definida como qualquer informação que suporte ou refute uma afirmação ou hipótese. Pode vir de várias formas, como dados científicos, testemunhos oculares ou registros históricos. Quando temos evidências, podemos usá-las para construir um caso a favor ou contra uma determinada ideia, teoria ou crença. No entanto, a evidência nem sempre se refere à verdade. A verdade é, muitas vezes, subjetiva e pode variar de acordo com perspectivas, crenças e experiências de um indivíduo.
Por sua vez, a vidência é um dom sobrenatural de ver o passado, o futuro, objetos ausentes ou inexistentes, imaginar contextos para os quais não temos vivência empírica. Toda evidência possui uma camada de vidência ou de projeção que está associada ao ponto de vista de quem a encontra. É algo neutro até o momento em que projetamos nela o que se deseja provar. Isso se aplica da arqueologia às fake news.
A verdade é, muitas vezes, subjetiva e pode variar de acordo com perspectivas, crenças e experiências de um indivíduo
Numa era cuja construção de evidências passou a ser capacitada pela inteligência artificial, fica cada vez mais difícil distinguir a verdade da intenção, o fato da sua consequência. Tudo se torna passível de interpretação, projeção e imaginação. Qualquer estatística pode provar qualquer coisa.
Nunca fomos tão rastreados de evidências: nossos celulares sabem, a cada minuto, onde estivemos, em companhia de quem, a direção que estávamos e com quem nos comunicamos no percurso. O que no passado era impossível de se imaginar sem um espião profissional, hoje está simplesmente alocado permanentemente dentro de aplicativos como o histórico do Google Maps, a memória do WhatsApp e a timeline do Instagram.
Todas as conversas que um dia tivemos e achávamos que eram palavras ao vento não mais o são. Em algum lugar dessa nuvem infinita estão armazenados como big data. Nada se perde, tudo se transforma em evidência.
Existem cinco cenários apocalípticos mais possíveis para o fim do mundo: aquecimento global, pandemia, guerra nuclear, impacto de asteroide e disrupção tecnológica. O último, para mim, parece o mais provável. A dependência de um mecanismo de onisciência que pode falhar e deixar o planeta à deriva. Será que ainda seremos capazes de lembrar quem somos e para onde estávamos indo? A nuvem é hoje uma espécie de mapa da consciência coletiva. No dia que a nuvem cair, a consciência deixa de existir. Todos os sistemas que controlam a sociedade residem nesse lugar abstrato.
Na inteligência artificial existe um conceito chamado de “prediction”, ou seja, o computador tem o poder de antever e consequentemente direcionar o nosso pensamento. O mecanismo de previsão em inteligência artificial pode ser descrito como o processo pelo qual um sistema usa dados passados para fazer suposições sobre eventos ou resultados futuros. Exatamente como é a vidência.
Esse lugar da criação da projeção, ou da expectativa que, por antecipação, produz uma evidência antes mesmo que o fato exista. Existe uma assincronia de acontecimentos em que a consequência acontece antes do ato, e a consciência passada projeta a realidade futura, onde o agente é passivo diante do histórico que o pré-determina.
Todas as conversas que um dia tivemos e achávamos que eram palavras ao vento não mais o são
Vivemos num mundo baseado no conceito de múltipla escolha, cujo livre-arbítrio só existe dentro de um terreno pré-determinado. Aprendemos a fazer provas com base em mecanismos de recompensa, tentativa e erro. Muito mais do que em conhecimento empírico ou no instinto. Instinto, esse sim um mecanismo em extinção. O instinto é algo profundo que nos permite acessar memórias ancestrais, gravadas no nosso DNA mesmo antes da nossa existência. Essas memórias têm o poder similar da projeção e da predição que as novas tecnologias nos impõem. Dentro dessa lógica, estamos em um sanduíche entre as memórias do que não vivemos e as predições que nos determinam. A realidade é um refém das vidências e evidências.
Embora a evidência nem sempre seja a mesma coisa que a verdade, ela é uma ferramenta na busca por conhecimento e compreensão. Mas o excesso de evidências produz uma contaminação do valor de uma informação e consegue limitar a própria concepção do real. Existem mais evidências do que cabem na realidade. Devemos nos esforçar para usá-las da forma mais eficaz possível, ao mesmo tempo em que reconhecemos suas limitações e o potencial de viés e erro. É preciso entender que a maior parte das evidências do nosso tempo originam de uma vidente não-humana que molda as pegadas que ainda não caminhamos.
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
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