Luz del Fuego
Tema central do livro de Javier Montes, a brasileira ficou famosa por suas aparições nua enrolada numa cobra, em defesa do naturismo, da natureza e da diversidade sexual
Mesmo quem nunca ouviu falar no nome puxado para o espanhol da modelo, atriz do teatro de revista e ativista talvez já tenha topado com uma imagem da capixaba totalmente nua e envolta por uma cobra serpenteante. Uma das presenças mais aguardadas dos bailes do Carnaval carioca nos anos 1940 e 1950, Luz del Fuego era muito mais do que uma polêmica aparição anual; foi também uma radical questionadora da sexualidade, da política e dos costumes da época, influente até os dias de hoje.
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Além de ter criado a primeira comunidade naturista do Brasil – a Ilha do Sol tantas vezes cantada nos versos do baiano Netinho –, fundou um partido político em defesa da prática, cujo lema era “menos roupa e mais pão”. Ao longo de sua existência, viveu abertamente sua pansexualidade, foi defensora ferrenha das causas ambientais e dos direitos LGBTQIA+ muito antes de a sigla existir.
Nas palavras do escritor espanhol Javier Montes, nascidas do período em que ele viveu no Rio de Janeiro, del Fuego ganha vida num relato que mistura realidade e ficção – até porque uma está sempre incluída na outra. Para a dançarina e cantora Rita Cadillac, que compara sua trajetória à da naturista, del Fuego foi uma mulher “que lutou com determinação e garra por aquilo que acreditava, que nunca se dobrou a qualquer mando masculino”. Uma figura cuja complexidade cabe mas não se limita a uma de suas frases mais controversas: “Para a fome, temos o pão; para a sede, a água; para a imoralidade, a nudez.”
— Luz del Fuego está chegando!
Há anos, a chegada de Luz del Fuego às portas do baile é o momento mais desejado, temido e esperado de todo o Carnaval do Rio. Desde que, exatamente cinco anos atrás, numa noite como esta, num momento tão cuidadosamente escolhido como este, um luxuoso conversível parou diante das escadarias do teatro e quatro garotas cobertas de folhas de parreira douradas e estrategicamente dispostas desceram sorridentes e enigmáticas e formaram duas filas, à direita e à esquerda, para fazer um corredor de honra em frente à porta do carro. Abriu-se lentamente para mostrar quem vinha: Luz del Fuego, com seus longos cabelos pretos penteados para trás para não ocultar um único centímetro de seu corpo totalmente nu, coberto apenas por um óleo que fazia sua pele morena reluzir como se fosse de bronze e seu sexo, muito mais preto que seus cabelos, brilhar com reflexos escuros.
Coberta apenas pelo óleo e pela jiboia gigante também reluzente, marrom e preta, inconfundivelmente viva e desdenhosa, carregada pela mulher com toda naturalidade, como a mais luxuosa estola de peles ou xale de contas. Não que ela fosse mais bonita ou mais feia ou mais alta ou mais baixa que seu séquito ou que as outras mulheres, mas era infinitamente mais perturbadora, mais inédita. Não levava em seus pulsos nem no pescoço nenhuma joia além de uma maçã muito vermelha, dolorosamente vermelha como um gigantesco rubi (ou uma daquelas maçãs vitrificadas que todo mundo, antes ou depois, compraria nas banquinhas de rua durante o Carnaval) para o qual se voltaram e refletiram todos os flashes, todos os holofotes, todos os olhos brilhantes e todas as bocas entreabertas das sacadas, calçadas e postes de luz.
Naquela primeira noite, sua chegada pegou todo mundo desprevenido. Naquela primeira noite ninguém berrou, como nesta, um nome difícil de ser pronunciado pelos brasileiros e que só seria conhecido em todo o país a partir de então: nem a encorajaram, nem vaiaram, nem gritaram palavrões, ofertas, insultos.
Naquela primeira noite, Luz del Fuego, sorridente, natural de maneira sobrenatural, avançou com a cabeça erguida e os pés descalços, acariciando distraída a jiboia que lhe servia ao mesmo tempo de acompanhante e complemento, ouvindo satisfeita o silêncio boquiaberto da multidão e as piadas divertidas que o animal parecia lhe sussurrar.
Nem ela nem sua escolta precisavam dar aos repórteres o título da fantasia: naquela noite Luz del Fuego era Eva, que escapara do aborrecido paraíso e estava determinada a se divertir e dançar até se acabar, como a mais glamourosa das celebridades convidadas para o baile.
Ou não convidadas? Ao pé da escadaria, ainda sorrindo, pausou diante dos porteiros uniformizados que barravam a passagem. Os convidados, que tinham deixado o baile para se aglomerar nas portas e varandas para assistir ao prodígio, aguçaram os ouvidos, hesitando entre o escândalo e a zombaria, com as mãos indecisas cheias de serpentinas. Não houve uma voz que sobressaísse. Todos, na rua e no teatro, estavam contagiados pela mistura de apreensão e constrangimento dos porteiros.
Luz del Fuego, com seus longos cabelos pretos penteados para trás para não ocultar um único centímetro de seu corpo totalmente nu
A expectativa teve um duplo efeito: por um lado, a alta sociedade carioca se sentiu aliviada por conseguir assimilar a aparição inenarrável com uma situação reconhecível, que já haviam presenciado mil vezes e que sabiam farejar com um prazer secreto: alguém tentava se aproximar de seu poder e escalar até sua posição olímpica, esgueirar-se sem ser convidado para o baile. Diante desse estratagema, acionaram mecanismos de defesa aperfeiçoados por gerações e gerações. As matronas dispostas a fazer um esforço de tolerância naquela noite entenderam que aquela era a linha vermelha que não deveria ser cruzada; as jovens núbeis mostraram seus ferrões ao mesmo tempo, como abelhas de uma mesma colmeia; os dândis, os pretendentes e os pais adivinharam que mostrar simpatia com a recém-chegada lhes acarretaria reprovação, lágrimas, cenas intermináveis de ciúme e vingança servida fria nos próximos meses.
Portanto, ninguém lançou perfume ou purpurina das sacadas. Muitos rostos fizeram careta, muitas risadas soaram afiadas e nenhuma mão bateu palmas enquanto durou a conversa com os porteiros que julgavam a entrada no paraíso privado. Luz del Fuego não olhou uma só vez para cima, não tentou agradar ao rei Momo, de repente severo, nem aos convidados que passavam por ela e a olhavam de soslaio. Como se soubesse muito bem que nunca, jamais funciona tentar agradar alguém que já decidiu ser hostil conosco.
Sem abandonar o sorriso, acariciando sua serpente, deixando-lhe a tarefa de retribuir os olhares de indiferença e desdém, cumprimentou de maneira educada os porteiros e voltou a percorrer com toda a calma do mundo, como se sua nudez a abrigasse melhor que qualquer roupa, o corredor que levava ao seu conversível.
Foi então que o silêncio e os murmúrios das pessoas amontoadas atrás das faixas aumentaram e se espalharam em aplausos, a princípio isolados e num grito solitário, que em poucos segundos eclodiram num clamor da multidão de súbito ciente do nome sussurrado por algum sabichão e de repente também transformada numa legião de fãs:
— Deixem Luz del Fuego entrar! Deixem Luz del Fuego entrar! Deixem Luz del Fuego entrar!
O sorriso da rejeitada se tornou triunfante e brilhou enquanto se virava para um lado e para o outro, junto ao automóvel. Mais que agradecer, com sua reverência aceitava como natural a homenagem das mil vozes que entoavam seu nome. Do conversível mandou um beijo que teria causado inveja em qualquer cabeça coroada na Europa e estrela do cinema americano, e desapareceu sob aplausos, saudações e elogios lascivos. Deixou para trás a sensação de que presenciou uma aparição irrepetível e a segurança de que nada que acontecesse naquela noite no Grande Baile de Gala corresponderia em mais brilho, mais originalidade e poder que o que acabara de ser visto na entrada: nenhuma fantasia ou máscara pensados durante todo o ano e avaliados em milhares ou milhões de cruzeiros poderiam ser mais ricos e deslumbrantes que o nu da mulher rejeitada às suas portas.
Nenhuma fantasia ou máscara pensados durante todo o ano e avaliados em milhares ou milhões de cruzeiros poderiam ser mais ricos e deslumbrantes que o nu da mulher rejeitada
- Luz del Fuego
- Javier Montes
- Fósforo
- 280 páginas
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