Coluna da Maria Ribeiro: Linha de crescimento — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

Linha de crescimento

Não sei se o recenseador, ou recenseadora, irá perceber meu esforço. Aquele que tenho feito pra limpar gavetas e abrir mão de outras versões

16 de Setembro de 2022

Um trabalho de estética da comunicação de massa escrito à mão, em 1998. Uma prova do meu filho mais velho sobre solo metamórfico, com direito a recado do professor e adesivo do pokémon colado no verso. Três receitas do pediatra da minha meninice, Pedro Solberg, com minha linha de crescimento aos sete, oito e onze anos de idade. Duas coleções de revistas, um fichário com partituras pra violão, quatro pastas de cartas em papel almaço, dezenas de recortes de artigos de jornal: tenho corrido pra receber o censo com a casa um pouco mais leve e quem sabe descobrir, a tempo da visita, quem sou eu afinal neste 2022.

O que, de fato, sobrou daqueles oito endereços que um dia comprovaram minha residência? Quais eram os CEPs correspondentes? E os números de telefone? O que permaneceu em mim daquelas identidades geográficas distintas? Caixas de cadernos universitários, fotos de casamentos desfeitos, desenhos de dinossauros, indícios de uma vida que de nada servirá ao IBGE: é assim que eu tenho feito, com o auxílio luxuoso da bat-organizadora Joana Bocayuva, a despedida de 40 anos de papeis caoticamente divididos em cinco gavetas de madeira.

Tenho corrido pra receber o censo com a casa mais leve e quem sabe descobrir, a tempo da visita, quem sou eu afinal neste 2022

O censo tem dois questionários. Um mais básico e outro com perguntas que se inicialmente podem soar invasivas, logo funcionarão como um verdadeiro intensivão de psicanálise. Diga-me como recebes o recenseador que te direi quem és. Ok, Hamlet jamais precisou responder sobre renda, profissão ou estado civil. Por outro lado, se precisasse dar conta de tantas interrogações, talvez não tivesse passado tanto tempo decidindo ser ou não ser. Ou alguém aqui acha que o príncipe dinamarquês teria conseguido responder de qual material eram feitas as paredes do seu castelo?

Sim, essa é uma pergunta do Censo. O país, com razão, quer saber onde, como e com quem moramos. Quer saber também até onde estudamos, se temos ou não religião, e quanto tempo levamos no deslocamento pro trabalho. Ninguém vai te confrontar sobre o porquê de você ter abandonado a música, casado aos 21 e ido pra Morro de São Paulo ao invés de Boipeba. É igualmente inútil ensaiar respostas sobre o que você espera dos próximos anos ou se tem feito algo de concreto pela preservação das nossas florestas. Mas vale descobrir sobre encanamento, esgoto, e treinar para reafirmar seu ofício.

Bom, como não segui a profissão de jornalista, e não tenho angústia com fichas de hotel, posso responder, sem medo e sem dúvidas – coisa rara neste CPF – que sou atriz. Gosto verdadeiramente de fingir ter outros nomes, fico feliz quando saio no jornal, tenho apreço pela plateia desde o dia em que fui dama de honra da minha prima Cristiana, e me comportei como a noiva. De modo que essa questão está mais do que elaborada, mesmo que às vezes eu faça uns bicos dirigindo uns filmes ou escrevendo umas coisas.

Filhos: tenho dois. Isso também é certo. Aliás, não só certo, como também divino maravilhoso, a não ser nos dias de Fla-Flu, quando minha imparcialidade materna é confrontada com a filha do meu pai tricolor (que às vezes ainda sou).

Que mais? O domicílio é particular, possui três quartos e dois banheiros e na porta – não sei se você, viu? –, tem vários adesivos do Lula. Ah, as gavetas, não sei se você notou, estão completamente de acordo com a pessoa que eu sou hoje, uma mulher de 46 anos que mora com seus dois rebentos e gosta de Ana Martins Marques, coca-cola e séries de tevê.

Não sei se o recenseador, ou recenseadora, irá perceber meu esforço. Aquele que tenho feito pra limpar gavetas e abrir mão de outras versões, e de investigar de que material minhas paredes são feitas. De toda forma, guardei as receitas com as linhas de crescimento. A altura não vai mais mudar, mas o ponto de vista, esse segue vivo como uma bandeira vermelha. Bora tentar de novo?

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação