Leandro Sarmatz
Homem com H (de horror)
Como chegamos a este ponto? Por que o nosso país é um terreno tão fértil para a violência contra a mulher?
Um procurador agride brutalmente sua chefe. O delicado caso de uma jovem atriz que doou seu bebê fruto de um estupro é divulgado por um jornalista sem escrúpulos. Uma mulher sofre violência sexual na hora do parto – o criminoso, um anestesista, provavelmente já cometera o mesmo crime em outras ocasiões. Bem-vindo ao Brasil, a distopia absoluta de gênero.
Há muito mais. Praticamente todo dia descobrimos como o homem no Brasil pode fazer praticamente tudo o que quiser com uma mulher – até ser descoberto. Enquanto isso, a lista de violências só aumenta. Não há um minuto de sossego para meninas de 11 anos, para mulheres na hora do parto, para a garota que é embriagada por “amigos” na balada, para antigas parceiras de escroques violentos, nem mesmo para bebês. Não há civilização possível enquanto uma mulher for objeto de violência física ou simbólica.
Porque também tem isso. A quantidade de garotas que tem suas imagens expostas em grupos de WhatsApp é absurda. Geralmente quem dissemina as fotografias é o namorado ou o antigo parceiro. Aviltadas, sentindo-se ainda mais vulneráveis, muitas cometem suicídio ou desenvolvem sérios problemas psicológicos.
Algo da identidade nacional parece ser reafirmado para alguns homens quando uma mulher sofre algum tipo de violência
Como chegamos a este ponto? Ou melhor dizendo: por que o nosso país é um terreno tão fértil para a violência contra a mulher e o feminino? Posso identificar alguns traços – a objetificação do corpo que remonta ao período da escravidão, o machismo ostensivo típico de sociedades menos letradas, a violência nas relações sociais e de poder que perpassa todo o tecido comunitário –, mas parece que há algo a mais. Algo da identidade nacional parece ser reafirmado para alguns homens quando uma mulher sofre algum tipo de violência. É neste labirinto de sadismo, objetificação e desumanidade que estamos perdidos, desnorteados, tentando encontrar um rumo. A saída não será nada fácil. Haverá saída?
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Eu tinha oito anos e talvez não fosse o modelo de garoto para minha idade e classe social. Não era grande fã de futebol, me dava melhor com algumas coleguinhas e ainda nem despertara (ao menos conscientemente, dr. Freud) para o mundo do desejo. Gostava de gibi da Mônica, de andar de skate e de desenhar feito um doido enquanto assistia algum filme na Sessão da Tarde.
Um dia, voltando da escola no carro com meu pai e seu irmão, meu tio, olhei casualmente para fora da janela, absorvido em meus próprios pensamentos. Acontece que passava uma moça – não saberia precisar a idade, porque naquela época para mim qualquer mulher maior do que 15 anos já era uma “adulta” – de calça jeans, salto alto, bustiê, um figurino mais ou menos comum nos primeiros anos da década de 1980, decalcado talvez de “As Panteras”. Assim que o carro passou os dois marmanjos sentados na frente começaram a exultar, com orgulho indisfarçável: “Sem-vergonha, olhando pra bunda dela!”. De início, não percebi que estavam se dirigindo a mim. Mas era comigo mesmo. Atordoado, falei que não, eu estava somente olhando para a janela mas absolutamente distraído. De nada adiantou. Ao longo dos meses seguintes tive que enfrentar inúmeras piadinhas dos caras da família com a “filmada” que supostamente eu dera na bunda da moça.
Lembro como era desagradável negar a afirmação daqueles dois. Eu podia ter me conformado e topado encarar a bravata masculina. Mas por ingenuidade absoluta – não entendia a razão de ficar olhando ostensivamente para uma mulher que passava distraída pela rua –, neguei o quanto pude. Depois de algum tempo a história foi morrendo até que enfim não me incomodassem mais.
É uma sociedade em que o desrespeito com a mulher é uma construção quase pedagógica
É um episódio de nada, claro, embora eu me lembre muito bem de como aquilo tudo me feriu e incomodou na época. Mas me parece hoje exemplar da forma como muitos meninos são criados no Brasil. Mesmo antes de realmente despertarem para a vida sexual eles são lançados nesse mundo de masculinidade tóxica, de bravatas e comportamento de manada. Ai de quem discordar ou dar um passo atrás: é “fraco”, é “florzinha”, é “covarde”. O resultado é uma sociedade em que o desrespeito com a mulher é uma construção quase pedagógica. É, enfim, nossa paideia. Não tenho dúvida de que os homens da minha família achavam que estavam me dando alguma lição formativa naquela época.
Embora eu perceba que a escola tenha avançado muito em tratar de questões de gênero, o nó está nas famílias. Minha filha, que estuda num colégio em bairro nobre de São Paulo, se depara todo dia com garotos bravateiros falando absurdos para ela e suas colegas. Garotos que inclusive partem para a agressão física quando algo nas colegas lhes desagrada. E os professores bem que tentam. Mas a questão está mesmo em casa. Nas reuniões com as famílias você percebe que alguns dos pais são versões “adultas” daqueles aprendizes de misógino da turma. Aí você se depara com uma situação paralisante, tal como me senti aos oito anos: ir contra a corrente vai fazer algum sentido? Não há só uma resposta possível. Mas só há uma luta possível.
Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia
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