Coluna da Vanessa Rozan: Entre ceder e consentir — Gama Revista
COLUNA

Vanessa Rozan

Entre ceder e consentir

Enquanto muitos afirmam que as mulheres podem tudo, elas ainda perdem seus empregos por serem mães ou por envelhecerem

08 de Julho de 2022

Esses dias eu li alguém discutindo a coisa toda do cabelo branco, que era mais que hora de assumir e que, vamos lá galera, mulheres, quebrar os padrões de beleza.

Pasmem, o feminismo liberal, que já fez muito por nós, lutando por nossos direitos civis – Alô direito ao voto e à educação! –, foi esvaziado de luta e em algum momento ficou no tal empoderamento. Melhor, ficou num recorte do discurso do empoderamento. Esse empoderamento de consumo, que já está gasto e foi apropriado pelo marketing de muita empresa pra vender de um tudo pra gente, esse termo que diz que é legal e possível ser quem você quiser ser, em 12 vezes sem juros.

O corpo é seu e no fim, meu corpo, suas regras, né? Opa, ato falho. Meu corpo, minhas regras, a proibição do aborto nos EUA tá aí pra dizer mais sobre isso.

Enquanto muitos afirmam que as mulheres podem tudo – votar, trabalhar, ter filhos ou não ter filhos, casar ou não, usar a roupa que quiserem e pintar ou não seus cabelos –, as notícias e as estatísticas dizem o contrário. As mulheres perdem seus empregos por serem mães ou por envelhecerem, são estupradas e assassinadas só por serem mulheres e sim, a roupa que você estiver usando vai falar contra você. 65% das empresas preferem contratar pessoas magras. Os algoritmos vão entregar mais seu conteúdo se você mostrar mais a pele – quase duas vezes mais se estiver em roupas de banho do que vestida, no caso das mulheres.

A decisão de não pintar o cabelo coloca estatisticamente sua capacidade de ganhar dinheiro em jogo

Recebi uma mensagem no grupo dos assinantes do meu canal no Youtube, era um link com a notícia de que uma modelo usava sangue menstrual no rosto para continuar jovem. Só pra relembrar que a gente já tinha falado disso na coluna anterior, sobre pensar em comer cocô se revertesse a idade.
Então pintar ou não o cabelo, e aqui eu me refiro à esconder os fios brancos para dar aquela leitura de “jovialidade”, não é uma escolha pessoal. Ou pelo menos não é tão simples assim.

Essa decisão coloca estatisticamente sua capacidade de ganhar dinheiro em jogo, coloca sua possibilidade de construir e até mesmo manter laços afetivos em jogo. E se isso não é um jeito de cercear uma escolha, não sei o que é. Se você está disposta a botar isso em jogo em nome de quebrar os padrões, parabéns, mas não dá pra achar que estamos todas na mesma página.

Tinta de cabelo e cremes anti-idade estão aí sendo vendidos como autocuidado, palavra próxima de autoestima ou bem estar e eu to aqui comprando e usando, viu? Só pra deixar isso bem resolvido, essa é uma reflexão sobre ceder aos padrões mais do que consentir com os padrões de beleza. Claro, quem não quer uma ótima desculpa pra gastar dinheiro em uma indulgência. Talvez uma brusinha não, mas um creme para olhos, afinal a idade está aí, é necessidade, e se tem algo certo como a morte é que o tempo está passando. Eu sou a primeira da fila a testar esse ingrediente novo lançado ontem e que promete tudo.

Ceder às opressões estéticas é bem distante de consentir com os padrões de beleza

Essa tomada de consciência não nos faz quebrar esses padrões, saber como funciona o sistema não te tira dele. Aliás, enquanto o clima for de capitalismo, a gente vai seguir sendo objeto, e o discurso pode até ser de liberdade mas é uma só uma liberdade condicional. Porque a gente tomou a pílula da matrix não quer dizer que a gente vai conseguir operar diferente, então tudo bem apostar no skincare antiage, na tinta de cabelo e no batom que te faz sentir poderosa. Ceder às opressões estéticas só chancela que existe uma estrutura que nos “obriga” a correr atrás do prejuízo – detesto essa expressão – e é bem distante de consentir com os padrões de beleza, que pelo termo, anularia a responsabilidade da sociedade na manutenção desses padrões, e nos coloca como se fosse só nossa culpa – “Você que não está se esforçando, gata”.

Complicou aí ou só aqui? Vou tentar resumir: quis demarcar a diferença entre ceder e consentir, que são as nossas opções atuais, pois para sair dessa dualidade, a nossa outra opção nos custaria tamanha energia que nem sabemos se a temos em estoque. Isso poderia nos custar nossas carreiras, nossos salários, oportunidades de emprego e vínculos afetivos. Não é sobre pintar ou não o cabelo. Mas agora eu vou fazer igual terapeuta, acabou a sessão, durma com essa.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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