Leandro Sarmatz
Uma voz que vem do nosso fundo
Martinho é uma esquina entre o canto de África e a modernidade jocosa e cheia de afeto do Rio. Um bamba
Martinho da Vila lançou há pouco um álbum novo, “Mistura Homogênea”. Martinho completou 84 anos em fevereiro. Numa idade em quem muitos estão tomando suas Brahmas no pátio de casa e assoviando a canção do passado, o sambista carioca continua produzindo, conversando com novas gerações de músicos e compositores, indignado com o Brasil da família Bolso.
Martinho José Ferreira (seu nome de batismo) é praticamente da mesma geração de Gil, Caetano e Benjor, todos entrados – ou a caminho – da casa dos 80. Cito os três porque continuam relevantes e produzindo beleza. Mas muita gente esquece que Martinho apareceu na mesma época deles, finalzinho dos anos 1960, quando concorreu com “Menina Moça” no 3º Festival da Record. Sim, no mesmo festival em que Caetano apresentou “Alegria, Alegria”, Gil e os Mutantes atacaram de “Domingo no Parque” e Edu Lobo e Maria Medalha vieram com “Ponteio” – entre muitos outros nomes e cartazes da época, como Elza Soares, Roberto Carlos, Elis Regina, Geraldo Vandré etc. Fora dos rótulos e dos manifestos, Martinho já era Martinho em “Menina Moça”: um partido alto melífluo em plena refrega Tropicalista, com aquela voz cantofalada, cheia de calor e sorriso.
Lembra um Lou Reed solar e extasiado, cantando-conversando com aquela voz profunda e cheia de malícia, prazer sensorial e alegria
Eu não manjo nada de teoria musical e tenho um ouvido de lata enferrujada, mas adoraria ler um ensaio de José Miguel Wisnik, Arthur Nestrovski ou Walter Garcia sobre Martinho. A voz de Martinho sempre me fascinou. Forçando um pouquinho a barra, ele por vezes lembra um Lou Reed solar e extasiado, cantando-conversando com aquela voz profunda e ao mesmo tempo cheia de malícia, prazer sensorial e alegria. A cadência é outro trunfo. Todo mundo lembra, e com razão, da forma que Orlando Silva escandia as palavras, tirando a melhor sonoridade delas – coisa que João Gilberto levaria ao paroxismo, roçando o silêncio. Considero Martinho praticamente da mesma cepa. A forma como ele pronuncia as palavras nas músicas, alterando o tempo delas, quase sempre deixando-as mais lentas para em seguida abrir aquela bocona que é mil sorrisos, não tem igual. É uma voz (o timbre, o andamento, a forma de pronunciar as palavras) a um só tempo ancestral e extremamente moderna. Martinho é uma esquina entre o canto de África e a modernidade jocosa e cheia de afeto do Rio. Um bamba.
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Comecei a ouvir Martinho da Vila quando eu devia ter uns seis ou sete anos. Morávamos numa rua no bairro de Petrópolis, em Porto Alegre, e no prédio ao lado havia a única família negra da rua. “Tio Silvio” e Shirley – eu o chamei de tio ao longo da infância inteira e sempre vou gostar mais dele do que de todos os meus tios “verdadeiros” – eram o oposto dos adultos com quem eu convivia. Eram solares, bem-humorados, demonstravam afeto sem culpa. (Ele vinha de uma cidade que fazia fronteira com o Uruguai, então temperava esse humor com um gauchismo espaçoso e cheio de expressões em castelhano). No fim dos anos 1970, ainda na faixa dos 40 anos ou menos, se vestiam lindamente e viviam num apartamento meio hippie e colorido, com tapetes e pufes por todos os cantos e forrado de discos de vinil. Muita Beth Carvalho, muita Elza Soares e, claro, Martinho e suas capas de Elifas Andreato.
Aqui, o cancionista é muitas vezes alguém que nos ajuda a entender esse país contraditório, violento e que não nos dá descanso
Um disco em especial, saído poucos anos antes, era ouvido à exaustão (a ponto de meus pais comprarem o k-7 para escutarmos em casa): “Maravilha de Cenário”, de 1975. É uma obra-prima que eu escuto até hoje, 40 anos depois. Tem vários clássicos, “Aquarela Brasileira”, “No Meu Tempo de Menino”, “Você Não Passa de Uma Mulher” e “Cresci no Morro”. É uma coleção de pérolas ritmadas. A voz de Martinho está no auge. Ninguém canta como ele ali. Por vezes, como em “Você Não Passa de Uma Mulher”, ele se aproxima de uma tonalidade quase feminina (quando canta “ai mulher”), e então a voz se despe de qualquer masculinidade ostensiva e parece se amalgamar com o próprio assunto da faixa. A letra, que hoje em dia pode passar uma impressão meio equivocada de seu compositor, na verdade conversa com uma canção como “Just Like a Woman”, de Dylan. A dualidade da potência feminina aos olhos de um poeta, força e fragilidade fascinando e trazendo indagação e desejo.
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Martinho também escreve livros. Nos textos que eu li, esbanja uma naturalidade que é fruto de muito labor, a mesma que o consagrou como sambista. Sua escrita parece espontânea e marcada pela conversa, tem uma oralidade fluída e – de novo – profundamente empática. A música popular brasileira tem dessas. Chico ficcionista, Caetano ensaísta, Martinho se dividindo entre a crônica e o conto. Isso não é tão comum lá fora. Gainsbourg escreveu um romance, uma curiosidade apenas. Dylan fez aquele livro fascinante de memórias reinventadas. Não são tantos os exemplos, comparando com o Brasil. Aqui, o cancionista tem outro papel. É muitas vezes alguém que nos ajuda a entender esse país contraditório, violento e que não nos dá descanso. Gilberto Gil na ABL é a consagração – digamos – oficial de um processo que independe de academias e aplausos oficialescos. Martinho, com sua voz única e sua inteligência resplandecente e inconformista, figura neste nosso querido panteão.
Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia
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