Leandro Sarmatz
O músculo da sociabilidade
Como todo músculo, por mais metafórico que seja, é preciso da labuta diária para deixá-lo nos trinques. Afastados uns dos outros, temos penado agora para voltar à velha forma
Então a vida – ou boa parte dela – voltou. Veja as ruas ao final do dia: os bares apinhados, o trânsito novamente caótico, as pessoas se encontrando com euforia, fome e sede de afeição humana. Se nenhuma nova variante irromper, é justo pensar que aquele mundo até 2019 possa retornar sem freios.
Algumas coisas mudaram, contudo. A crise econômica e social se aprofundou. Há guerra na Europa (e há sempre infelizmente outras guerras naqueles lugares em que boa parte de nós sequer presta atenção). O xadrez – ou dominó – para definir os candidatos das próximas eleições é jogado diante dos nossos olhos. Há uma mistura envenenada de esperança e desalento. Essa podia ser a nova divisa da bandeira nacional, aliás.
Enfastiados de nossa própria imagem na câmera do Zoom, suspiramos pela vida concreta, palpável, sensorial. Basta da caverna platônica
Ninguém mais aguenta, e eu pelo menos não consigo mais tolerar, as lives. Trabalho no mercado editorial e saúdo com alegria a volta das sessões de autógrafos e debates presenciais. Saturados de tela, enfastiados de nossa própria imagem na câmera do Zoom, suspiramos pela vida concreta, palpável, sensorial. Basta da caverna platônica.
Mas estamos enferrujados. Semana passada dois amigos celebravam seu aniversário num bar da Zona Oeste paulistana. Outra amiga, por absoluta coincidência, também comemorava a virada de mais um ano no mesmo logradouro e na hora exata. Estava engraçado: subitamente o bar inteiro estava composto de pessoas que se conheciam ou que estavam a um ou dois graus de separação umas das outras. Respirava-se, forçando um pouquinho a barra, um espírito comunitário. Alguém brincou que cenário e personagens pareciam habitar uma daquelas novelas de Manoel Carlos em que todos (brancos e de classe-media alta, diga-se) se conhecem, se cruzam, se topam diuturnamente num Leblon idílico que é uma mistura de Upper West Side com Rive Gauche.
(Nota digressiva: esses dias vi a reprise de um capítulo de uma novela do autor e tudo ali excessivamente anacrônico, tudo dava conta pavorosamente de um Brasil que estamos aos poucos deixando para trás. Embora tivesse ido ao ar originalmente há pouco mais de dez anos, a novela de Manoel Carlos, com suas madames alabastrinas, a playboyzada que vive de renda e nada produz e um parco elenco de atores negros que estão ali para representar serviçais, parece anterior à Joaquim Nabuco. Tudo é tomado por um saudosismo tóxico, patriarcal, de casa-grande com o Split ligado no talo. Da sinetinha para pedir o cafezinho à empregada até a trilha sonora composta de standards da bossa nova, que está ali apenas como referência de um “Brasil chique” na cabeça do autor, tudo é antigo, demodê, ultrapassado e socialmente petrificado. Ainda bem que em pouco mais de uma década os movimentos sociais e a universidade empurraram isso para a caçamba da História.)
Talvez seja uma questão de tempo e de aplicação. E talvez alguns de nós jamais fiquem com a compleição original, infelizmente
Falava, porém, dos reencontros. No bar apinhado de amigos e conhecidos, encostado no balcão e observando o horizonte humano e etílico, pude constatar que praticamente todo mundo estava buscando ali uma naturalidade perdida depois de dois anos de confinamento e neuroses. Noto que mesmo aqueles que costumavam ser mais extrovertidos parecem fazer alguma ginástica para dar conta da nova efusão. Não lhes é mais tão natural assim saudar de forma sonora e amorosamente violenta o encontro com seus amigos: os palavrões ditos com carinho e intimidade, os tapas nas costas, os abraços apertados. Hesitam alguns segundos. Custam a esquentar e a engrenar. Estão sem ritmo, sem manha, sem elasticidade. Parecem aqueles atletas de fim de semana que amargaram um longo tempo sem mexer o corpo. Perderam um pouco a sintonia com o afeto do outro.
E isso tem acontecido com todos nós, em graus variados, dependendo, claro, da carnadura social de cada um. Porque é disso que se trata: esquecemo-nos de fortalecer o músculo da sociabilidade. Como todo músculo, por mais metafórico que seja, é preciso da labuta diária para deixá-lo nos trinques. Afastados uns dos outros, temos penado agora para voltar à velha forma. Talvez seja uma questão de tempo e de aplicação. E talvez alguns de nós jamais fiquem com a compleição original, infelizmente. Mudamos, envelhecemos, direcionamos nosso foco para outras coisas. Alguns hão de se lamentar e fazer de tudo para ficar socialmente atléticos de novo. Outros, talvez mais pachorrentos, poderão desistir. Ficarão para sempre com o zoom, o streaming e o ifood – ou o “luxo, calma e volúpia” baudelairianos da nova era. Uma pena.
Aqueles três aniversários num mesmo bar, contudo, sinalizam para outro movimento. A grande maioria de nós deseja sim o encontro com o outro. Não promete ser um caminho calmo e sem obstáculos, sabemos disso. Não há na face da Terra alguém que tenha saído da pandemia exatamente como era em fevereiro de 2020. Se há, certamente é alguém de caráter duvidoso (e a gente sabe quem é assim). O resto da humanidade está sambando agora para lidar com os reencontros sociais e com um novo tipo de encontro: aquele consigo mesmo num mundo francamente mais hostil e menos afortunado e com o outro que, mesmo sendo um velho conhecido, se transformou um bocado e pode não mais corresponder às expectativas de dois ou três anos atrás. Que o exercício continue.
Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia
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