Leandro Sarmatz
Os trilhos do mundo e os nossos
É difícil ficar bem quando o mundo inteiro dá uma guinada tão drástica para trás
Onde foi que nos perdemos? A pergunta, que parece insuportavelmente retórica – lembra publicidade ruim de Ong –, vem muito ao caso agora. Depois de termos sobrevivido (nem todos, infelizmente) a uma pandemia, agora testemunhamos a patifaria homicida de Putin sobre a Ucrânia. Houve um tempo, ainda que efêmero, em que podíamos acreditar em alguma calmaria geopolítica entre os antigos blocos que dominavam o mundo durante a Guerra Fria. Não é mais o caso. Uma era está nascendo sobre as ruínas de Mariupol.
Quem tem acompanhado o noticiário, no geral excessivamente calcado na personalidade de Zelensky, o Churchill do TikTok (sic), fica abismado com a coincidência imagética com a última grande guerra, a de 1939-45. O ambiente, claro, “ajuda”: trata-se do mesmo Leste europeu que foi violentado por Hitler a partir da invasão da Polônia, dando início a toda a sangreira no continente, ao extermínio sistemático (e fordista) das minorias, ao diabo das bombas atômicas sobre o Japão. Hoje, como há 80 anos, estamos vendo as avós com lenço na cabeça chorando desesperadas, as cenas de milhares de refugiados, órfãos, corpos apodrecendo no meio-fio e escombros a granel. Tudo muito absurdo, tudo muito triste. E lembremo-nos: ainda estamos tentando lidar com a pandemia. Uma tormenta de merda.
Nossa relação com o passado é a mesma do hamster na rodinha. Frenéticos, achamos que estamos saindo do lugar. Não estamos. Tudo é cíclico. Tudo volta: muitas vezes bem piorzinho
Fato consumado: a gente não aprende mesmo nada com a História. Tivemos essa ilusão? Cada geração se acha a mais esperta possível sobre os mortos da geração anterior. Acredita ser possível azeitar o que estava rangendo, lavar a louça dos séculos. Balela. Nossa relação com o passado é a mesma do hamster na rodinha. Frenéticos, achamos que estamos saindo do lugar. Não estamos. Tudo é cíclico. Tudo volta: muitas vezes bem piorzinho. E se ferra mais quem teve alguma ilusão de mudança. Coisas do mundo, minha nega. (Aliás, e digressionando completamente, esse ano o único príncipe brasileiro comemora 80 anos. Sim, senhores, Paulinho da Viola.)
Parece bastante claro que o mundo saiu dos trilhos. Ainda não chegou a descarrilar, mas é fato que tomou outra direção. Para onde, ainda não sabemos completamente.
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Quanto a mim, ainda que começando a voltar à rotina do trabalho presencial, dos reencontros com amigos e conhecidos, sinto cada vez mais que preciso – como muitos de nós – retomar o controle sobre a vida, bastante transformada nesses dois anos de reclusão pandêmica.
Agora, como no tempo dos nossos pais, é praticamente impossível fazer planos a longo prazo. Haverá país, haverá futuro?
A relação com dinheiro (ou com a falta dele) mudou. Depois de 24 meses de alegre irresponsabilidade – muitas compras diante do computador, muita refeição online –, é preciso puxar o freio urgentemente. Até porque a economia brasileira sob o capitão parece ter voltado aos 1980 (a gente não aprende mesmo). Inflação, combustível caro, a fome a céu aberto. Minha geração de adultos jovens sob os anos Lula tinha esquecido um pouquinho desse enrosco chamado Brasil. Agora, como no tempo dos nossos pais, é praticamente impossível fazer planos a longo prazo. Haverá país, haverá futuro? Resta-nos votar melhor daqui a alguns meses. E deixar o cartão de crédito esquecido no fundo da gaveta.
Mas não é só dinheiro. Vejo em mim padrões que há muito eu imaginei ter deixado para trás. Estou mais caótico, menos organizado – com meus livros e objetos de casa, com detalhes burocráticos do dia-a-dia –, menos propenso à tranquilidade, cavando angústias (reais e imaginárias) no meio das madrugadas insones. Tudo isso, que parecia ter ficado nos meus 20 e poucos, teima agora em reaparecer. E sob roupagem nova, mais sombria e mais desesperançada, até porque não sou mais o garoto de duas décadas atrás. Recomeços depois dos 40 não são um domingo no parque.
Tenho reparado comportamento semelhante entre diversas pessoas. Gente que escorregou em padrões (negativos) que há muito estavam fora de cena e, agora, vive torturada pelas sombras esquisitas do passado. Não vou ser niilista e dizer que, como na história com agá maiúsculo, a gente não melhora (“evolui”) em nossas trajetórias pessoais. Mas é difícil ficar bem quando o mundo inteiro dá uma guinada tão drástica para trás.
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Uma última digressão com uma nota sentimental. Em São Paulo, como em muitas outras cidades brasileiras, já é possível andar sem máscara na rua. Eu tinha esquecido como é o sorriso das pessoas, dos desconhecidos, na grande cidade. Usamos muito o sorriso como um passaporte para a delicadeza urbana, para atenuar possíveis asperezas no meio da multidão. É bonito de se ver. Tem algo de utopia brasileira, de um país que só existe nas melhores canções, distante da brutalidade diária. Por outro lado, se você, como eu, é passivo-agressivo, a falta da máscara funciona como um strip-tease do nosso próprio azedume: o tempo todo tenho que ficar controlando meus esgares, minhas expressões, sob o risco de me transformar num pária da antipatia diante de gente grosseira, espaçosa ou bolsonarista.
Pois é. E eu juro que pensava ter deixado esse comportamento no passado.
Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia
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