“Nêgo Bispo ousou apresentar uma solução comunitária para um mundo individualista”
A historiadora e professora da UFRB, Luciana Brito, relembra o legado de Bispo e lamenta sua morte precoce: “Bispo morreu dos males que a colonialidade, que ele tanto combatia, nos legou”
O escritor, intelectual e líder quilombola Antônio Bispo dos Santos, também conhecido como Nêgo Bispo, morreu neste domingo (3), no Piauí, após uma parada cardiorrespiratória. Ele enfrentava diabetes e, na última semana, estava com a saúde debilitada. Aos 63 anos, Bispo era um dos principais pensadores da cultura quilombola e do Brasil, sendo também um nome importante no movimento negro.
No final de novembro, Bispo foi uma das grandes atrações da Flica, a Festa Literária Internacional de Cachoeira, na Bahia. No evento, Bispo era unanimidade entre o público. Tratado como uma celebridade, era tietado e elogiado por onde passava.
Para Luciana Brito, historiadora, professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano e uma das cocuradoras dessa que é a maior festa literária do Nordeste, a passagem de Bispo nos lembra da importância de jamais esquecermos seus ensinamentos. “Os saberes acumulados ao longo de uma vida vivida num ambiente comunitário como o quilombo foram fundamentais para as soluções comunitárias apresentadas por Nêgo em um mundo individualista e que se destrói.”
A seguir você confere um depoimento inédito que Brito concedeu a Gama, sobre o legado de Nêgo Bispo:
“Será uma lastima se nos esquecermos — e a chance é grande — daquilo que Mestre Bispo nos ensinou: do falar posicionando-se como fruto da elaboração de um coletivo, uma vez que ele sempre apresentava sua ideia com um ‘nós, nós contra-colonialistas’.
Os saberes acumulados ao longo de uma vida vivida num ambiente comunitário, o quilombo, foi fundamental para esse saber coletivo e ancestral. Foi com isso que ele ousou apresentar uma solução comunitária para um mundo individualista e que se destrói.
Daqui desdobram-se outros pilares do pensamento quilombola de Nêgo Bispo: a ancestralidade que caminha com os viventes e o respeito à natureza, de uma militância ecológica popular, rural e urgente, cotidiana pela própria simplicidade com que esse professor explicava o óbvio: as razões da importância da preservação do meio-ambiente, sem o qual, não existirá vida.
A resposta para este mundo que não sabe mais como se salvar viria do quilombo. Mas a despeito da sua genialidade e importância, enquanto um dos maiores ativistas, intelectuais e interpretes desse país, Bispo era um homem negro e entrou para as estatísticas daquilo que as os pesquisadores do campo da saúde da população negra têm apontado faz tempo: morremos cedo demais, e no nosso caso, doenças tratáveis como a diabetes, mutilam e matam.
Come-se mal, o posto de saúde é distante, o médico não chega e quando chegamos até ele ou ela, é tarde demais. Bispo morreu dos males que a colonialidade, que ele tanto combatia, nos legou. Ao invés de 63 , Bispo poderia viver mais 20 anos ou mais, e quanto teríamos aprendido ainda mais com ele?
O racismo é uma carga ancestral, nos mobilizamos mas ele nos persegue e a grandiosidade desse que agora é nosso ancestral mais novo, não foi um escudo. Bispo virou encantado, e sim continua vivo enquanto lembrarmos de tudo que ele nos ensinou. Sua breve vida não será em vão.”