‘Estamos cansadas de perder’
Depois do caso de assédio sexual ocorrido em uma sessão da Alesp contra Isa Penna, a escritora Beatriz Bracher escreve uma carta aos deputados, e diz que eles têm uma oportunidade única nas mãos
“Quando eu vi o vídeo, tive um sentimento muito forte. Eu já vi essa cena um milhão de vezes, e quando jovem, vivi essa cena um milhão de vezes também. Estamos cansadas de perder.” A afirmação é da escritora Beatriz Bracher. Ela se refere ao episódio de assédio sexual sofrido pela deputada Isa Penna (PSOL) durante uma sessão da Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo) em meados de 2020, mas que voltou à tona nesta semana.
O deputado Fernando Cury (Cidadania), acusado de ser autor da importunação contra a deputada, apresentou defesa em que negava a intenção de assédio. Ele teve o mandato suspenso pelo Conselho de Ética da Alesp, pena considerada branda para o caso, e foi apoiado por outros deputados. O caso repercutiu na mídia e, na segunda-feira (15), o novo presidente da Alesp Carlão Pignatari (PSDB) pediu que a deputada Isa Penna “relevasse” o caso. Afirmou também que a cassação de Fernando Cury pelo plenário não deveria ser possível. Essa foi a gota d’água para a escritora
Bracher escreveu uma carta endereçada aos deputados da Assembleia Legislativa, na qual repudia a atitude de Cury e de tantos outros homens, dentro e fora da política, que assediam mulheres e saem impunes. “Fiquei angustiada com a possibilidade desse caso não sair da bolha, e quis me posicionar. Isa Penna e outras deputadas precisam aprovar uma emenda propondo a cassação”, disse Bracher. “É um episódio muito pequeno perto de tudo o que está acontecendo, tanta gente morrendo pelo coronavírus. Mas o que me incomoda é que, exatamente por ser pequeno, é um problema milenar. E agora temos uma oportunidade única de enviar uma mensagem muito clara.”
A seguir, Gama compartilha a carta de Beatriz Bracher na íntegra. Ela foi enviada a todos os líderes da Câmara dos Deputados, de acordo com a escritora.
Homens não são animais incapazes de controlar seus impulsos
“São Paulo, 16 de março de 2021
Aos senhores deputados da ALESP
Senhores deputados da ALESP, as mulheres não gostam de ser apalpadas por pessoas a quem elas não deram essa permissão.
Milhões de mulheres brasileiras são apalpadas e encoxadas diariamente no transporte público.
Se os senhores deputados da ALESP desconhecem essa humilhação cotidiana a que as mulheres brasileiras estão expostas, perguntem àquelas mulheres que os cercam — mãe, filha, mulher, irmã e amiga. Talvez elas nunca tenham andado de ônibus ou metrô em horário de pico, talvez, de fato, nunca tenham passado por essa situação quando jovens. Se assim for e se os senhores tiverem interesse em saber o que se passa com as pessoas que os senhores representam, sugiro que perguntem a suas funcionárias, cozinheiras, arrumadeiras, lavadeiras, diaristas e às babás de seus filhos.
Algumas consideram essa ação como “coisa da vida”. E dizem, “se fui molestada? Não, quer dizer, só assim, eles se aproveitam e se esfregam na gente quando o ônibus está cheio. Homem é assim mesmo”. Mas se insistimos um pouco, “e isso é ruim?”, a maior parte delas responderá, “é, é muito desagradável. Me sinto desrespeitada. Mas os homens são assim, fazer o quê?”.
Senhores deputados da ALESP, os senhores são assim?
Os senhores deputados da ALESP sabem perfeitamente que “os homens são assim” importunam as mulheres.
Os senhores deputados da ALESP acham que as mulheres que se ofendem por serem apalpadas devem relevar essa agressão, por que “os homens são assim”?
Os senhores deputados da ALESP consideram vingativa uma mulher que não desculpa um homem que a apalpa?
Os senhores deputados da ALESP consideram que uma mulher que diz que o homem que a molestou deve ser denunciado publicamente é uma mulher que faz tempestade num copo d’água, uma intolerante, pois, afinal, “os homens são assim”?
Os senhores deputados da ALESP pensam lá com os seus botões: “se tantas mulheres são encoxadas, por que essa daí tem que fazer esse escândalo? Por acaso ela se acha especial a ponto de não poder ser apalpada? Só uma mão boba em seu seio e já esse barulho todo! Afinal, ‘os homens são assim’”?
Pois se os senhores deputados da ALESP acreditam que os homens não precisam ser assim, mais ainda, que os homens não devem ser assim, está em suas mãos entregar essa mensagem clara a todos os brasileiros e brasileiras.
Os senhores têm uma oportunidade ímpar de dizer em alto e bom som: os deputados da ALESP não aceitam que homens apalpem e encoxem mulheres e apoiam todas as brasileiras que se manifestam contra essa humilhação.
Homens não são animais incapazes de controlar seus impulsos.
Homens não são animais incapazes de controlar seu desejo de poder e opressão.
Homens são seres humanos que precisam seguir regras de convivência social.
Os deputados da ALESP precisam dizer de forma inequívoca: homens não podem apalpar mulheres sem a sua permissão.
Suspender o deputado da ALESP Fernando Cury, que apalpou e encoxou a deputada Isa Penna no plenário à vista de todos, por apenas 119 dias é ser conivente com a importunação sexual. É uma atitude corporativa que procura defender não apenas os deputados da ALESP, mas os “homens brasileiros que são assim”.
Deputados da ALESP, os senhores tem uma oportunidade única nesse momento.
Cassar o deputado da ALESP, Fernando Cury, é uma mensagem clara e inequívoca às eleitoras paulistas: nós, deputados da ALESP, estamos do seu lado e contra os importunadores de mulheres.
Punir o deputado Fernando Cury com a suspensão de seu mandato por 119 dias é uma mensagem ainda mais clara: eleitoras paulistas, nós, deputados da ALESP, consideramos que importunar as mulheres não é grave.
Beatriz Bracher”
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