O estresse do professor universitário
Professores do ensino superior compartilham situações de estresse e ansiedade causados pela pandemia e o ensino à distância
O professor costumava aguardar suas aulas com ansiedade. O contato com os alunos da universidade onde leciona e a busca constante por formas de passar seu conteúdo de maneira interessante eram algumas das coisas que mais o estimulavam. Até que a pandemia o obrigou a fazer da videoconferência sua sala de aula e das dezenas de minúsculas janelinhas pixeladas seu único contato visual com os estudantes.
Quase tão rápido quanto a covid-19 se alastrou pelo mundo, sua confiança nos métodos de ensino, conquistada ao longo de 20 anos de experiência, se tornou um poço de dúvidas. Sentiu que os alunos não absorviam o conteúdo como antes, apesar de ter redobrado esforços para adaptar as lições à realidade virtual. Passou a sentir ansiedade antes das aulas. Com o tempo, o cansaço virou presença constante. Tinha dificuldade para se concentrar e para dormir. Quando chegou a desmaiar devido à estafa, decidiu procurar um médico, que lhe deu um diagnóstico de síndrome de burnout, distúrbio causado por um quadro de desgaste e cansaço extremo relacionados ao trabalho.
É uma sensação de estar trabalhando o tempo todo. Não me lembro de outro momento da vida em que tenha trabalhado todos os dias como agora
O professor, que está afastado das atividades profissionais e em tratamento desde novembro, diz que hoje se sente melhor. No entanto, preferiu não se identificar para não expor a si mesmo, assim como a instituição de ensino e os alunos.
O caso evidencia um dos principais impactos da pandemia na educação. Embora alguns ainda acreditem que os professores trabalham menos hoje do que antes, a realidade é bem outra. “Na pandemia, ficou evidente entre os professores uma sensação de ansiedade, que causou uma atenção maior à sua saúde mental. Além do estresse e da sensação de sobrecarga que podem levar à síndrome de burnout, há uma grande preocupação se os alunos estão aprendendo, se há engajamento. Muitas vezes, o professor se sente frustrado, sente que não está conseguindo dar conta de sua função”, explica a psicóloga Ana Carolina D’Agostini, mestre em psicologia da educação pela Universidade de Columbia, nos EUA.
Embora até o momento tenha sido dada mais atenção aos educadores do ensino básico, professores universitários enfrentam problemas similares. Com o retorno de boa parte dos cursos de pós-graduação ao longo de março, num ambiente de incerteza em que o país passa por seu pior momento na pandemia, as perspectivas não parecem positivas para os docentes. Com o recrudescimento da pandemia, também fica difícil prever quando e como se dará o retorno definitivo e presencial às salas de aula. E, além de dar aulas, muitos também produzem pesquisas, desenvolvem artigos e orientam teses e dissertações.
Gama falou com alguns deles e com especialistas em psicologia sobre as dificuldades enfrentadas no período, a sensação constante de esgotamento e um possível processo de exclusão causado pelo ensino à distância.
24 horas por dia
Lígia Diniz, 41, hoje professora substituta de literatura na Universidade Federal de Minas Gerais, está cansada. Ela permanece sentada por horas a fio frente ao computador, fala continuamente por videoconferência e ainda organiza a logística do escritório improvisado dentro de casa. Mais do que isso, precisa pensar frequentemente em conteúdos novos que impeçam os alunos de se distrair e perder o interesse. Resultado: terminou esgotada o primeiro semestre de 2020, quando trabalhava na Universidade de Brasilia (UnB) e lecionava para quatro turmas, num total de 200 alunos.
Chefe do departamento de literatura da UnB, Cláudio Braga, 49, vem recebendo relatos de professores que sentem sintomas de ansiedade, depressão e exaustão desde o início da pandemia. O excesso de telas, as aulas exaustivas de até quatro horas, a necessidade constante de transferir e adaptar conteúdos e a instabilidade de todo o processo, segundo ele, são os principais fatores que levam a um quadro generalizado de estresse entre o corpo docente.
Para D’Agostini, além desses fatores, hoje o professor passa parte de seu tempo livre desenvolvendo atividades que antes ficavam restritas ao ambiente escolar. “Eles sentem que estão disponíveis 24 horas por dia para os alunos, diretores e demais gestores no email e nas mídias sociais. Então estão trabalhando o tempo inteiro e com uma dose de trabalho muito maior.”
Diniz conta que passa até algumas madrugadas respondendo questões dos alunos. “É um cansaço físico e mental diferente, uma sensação de estar trabalhando o tempo todo. Antes, com a aula presencial, conseguia concentrar todas as discussões na sala. Não me lembro de outro momento da vida em que tenha trabalhado todos os dias como agora.”
Cartilha antiestresse
O sentimento de sobrecarga pode ser causado pela conjunção de três fatores: a sensação de que não conseguimos realizar as coisas do nosso jeito, uma impressão de incapacidade para fazer frente aos desafios do cotidiano e a falta de apoio de pessoas importantes para nós. É o que aponta a “Cartilha para Enfrentamento do Estresse em Tempos de Pandemia”, documento desenvolvido pela Força Tarefa PsiCOVIDa, formada por pesquisadores e estudantes de psicologia da PUCRS e da PUC Campinas. A meta é ajudar as pessoas a lidar com os desconfortos mentais e emocionais motivados pela pandemia.
Embora a cartilha tenha sido elaborada para o público em geral, pode ser de grande serventia para professores universitários e profissionais da educação, um dos setores mais afetados pelo isolamento social, segundo Wagner Machado, professor de psicologia da PUCRS. “Há risco de desenvolver um transtorno psicológico como depressão, burnout ou estresse crônico, com desligamento afetivo e mental do trabalho.” Outro problema, de acordo com Machado, é que existe uma tendência de esconder problemas de saúde mental — muitas vezes pelo medo de sofrer consequências profissionais — e só buscar ajuda quando o caso se torna grave.
A cartilha recomenda evitar comportamentos como adiar os problemas, se isolar ou reagir com agressividade. O ideal é encontrar uma ajuda concreta para o dia a dia, se abrindo com pessoas próximas ou buscando um profissional de psicologia. Além disso, como é impossível mudar parte das questões que enfrentamos hoje, o recomendável é aceitá-las e lidar com elas da forma mais positiva possível para nosso conforto emocional.
Um processo de exclusão
As aulas que Roberto Joaquim de Oliveira, 54, em sua experiência de 23 anos como professor de jornalismo, antes levava meia hora para preparar este ano demandaram aproximadamente 2h30. Aprender a mexer com a tecnologia não chegou a ser um grande problema, já que a Universidade Metodista, que oferece aulas à distância desde 2006, vem preparando seus professores há mais de uma década para dá-las. Ainda assim, a quantidade de trabalho se multiplicou.
Se, pela distância, tornou-se necessário cobrar mais trabalhos dos alunos para testar seu conhecimento, o professor também passou a gastar mais tempo avaliando-os. Ao final do primeiro semestre de 2020, pediu para se desligar temporariamente da universidade, tanto pelo que considera uma degradação das condições de trabalho quanto por se sentir sem energia para continuar dando aulas à distância.
Em suas pesquisas, a professora de psicologia da Universidade Estadual de Maringá, Marilda Facci, descobriu que os problemas de saúde mental de professores, apesar de terem se agravado na pandemia, já eram frequentes antes dela. Dos 250 educadores que entrevistou para seus estudos nos últimos anos, cerca de 45% usavam algum tipo de remédio para lidar com o cotidiano de ensino.
Segundo ela, o processo apressado de transição para a educação à distância pode acabar sendo excludente tanto para alunos quanto professores. “Muitos professores sofrem por causa da tecnologia, que em casa não é a mais adequada. Além disso, ela não substitui as interações e a didática da sala de aula”, afirma Facci, que diz ser contra o retorno às aulas presenciais sem uma vacina.
Embora seja importante não generalizar, D’Agostini aponta que professores mais velhos costumam ter uma dificuldade extra, pois a maioria já não usava com tanta frequência recursos virtuais em classe. “Nesse momento é preciso maior tolerância dos gestores escolares para reconhecer os desafios que cada um está enfrentando.”
“Eu sentia a questão emocional. Era muito estranho ver meus alunos simplesmente desaparecendo da tela ao final da aula”, conta Oliveira. “E tinha ainda o desgaste de tratar com a tecnologia, saber se todos estavam escutando, as dificuldades para entrar com uma imagem, um áudio… Eram muitos mecanismos para administrar e, às vezes, por causa da internet ruim, a aula ficava caindo o tempo todo. Quando terminava, eu estava exausto.”