Dimensões da fome atualizadas
Com a pandemia, o problema do acesso a alimentos virou emergência. Ações sociais viram assunto de chefs que, com ativistas, capitaneiam a campanha Gente é pra Brilhar não pra Morrer de Fome
É sempre impressionante pensar que em meio a todos os avanços tecnológicos que tivemos no último século, algo tão básico quanto a fome ainda seja uma questão social imensa mundialmente. Com a pandemia, é como se as dimensões do problema tivessem sido atualizadas — para pior.
De acordo com um relatório da Oxfam, organização internacional que reúne mais de 90 países para combater a pobreza, a fome deve matar até 12 mil pessoas em todo o mundo até o final do ano devido a consequências sociais e econômicas da pandemia, e um total de 122 milhões podem ser levadas à beira da fome. Neste cenário, o Brasil aparece como “epicentro emergente” da fome extrema, sem o apoio do governo aos mais vulneráveis.
A questão é tão urgente que dirigiu o Nobel da Paz para a iniciativa da ONU que combate a fome no mundo, o Programa Mundial de Alimentos da ONU, anunciado como laureado deste ano. O programa foi premiado “pelos seus esforços para combater a fome, pela sua contribuição para melhorar as condições para a paz em áreas afetadas por conflitos e por atuar como força motriz nos esforços para prevenir o uso da fome como arma de guerra e conflito”.
Gente é pra brilhar
No Brasil, o tema é discutido insistentemente na semana do Dia Mundial da Alimentação (16) pela campanha Gente é pra Brilhar não pra Morrer de Fome, que reúne 95 movimentos independentes da sociedade civil e de associações que já uniram esforços em outros anos para reduzir o problema. Nascido em São Paulo em protesto ao uso da chamada “farinata” pelo governo do estado em escolas públicas de São Paulo, o movimento começou como um “banquetaço” em 2017, em que chefs e ativistas se uniam para cozinhar uma grande refeição baseada em produtos de agricultura familiar para a população vulnerável e usar o evento para a conscientização da fome e da alimentação com a comida de verdade.
Uma das fundadoras, a chef Bel Coelho vai prepara um baião de dois para distribuir 1,7 mil marmitas no sábado (17). “É importante fazer a campanha, ainda que pontual, porque ela traz luz ao assunto. A fome aumentou significativamente nos últimos três anos e este governo está destruindo todas as políticas públicas em favor de uma soberania alimentar. Dois exemplos são o guia alimentar [que fez críticas e pediu mudanças técnicas] e as centenas de aprovações de veneno facilitadas. Sem falar que não há nenhuma vontade política de incentivo às políticas públicas contra a fome”, afirma Bel.
A questão pede uma política de estado. O Brasil saiu do mapa da fome, mas ela não sumiu do nosso mapa
A campanha e o banquetaço são realizados agora anualmente e assumem diferentes pautas a depender do noticiário do ano — acesso à comida, contra o veneno, pela agricultura familiar. Em 2020, com a pandemia, a fome virou tema central e o banquete virou marmitaço, para evitar o risco de contágio, a ser realizado no sábado e no domingo (17 e 18) em 76 pontos de diferentes capitais do país. “A questão pede uma política de Estado. O Brasil saiu do mapa da fome, mas ela não sumiu do nosso mapa”, afirma Adriana Salay, historiadora e uma das principais articuladoras da ação deste ano.
Quebrada alimentada
Junto a Rodrigo Oliveira, chef do Mocotó e do Balaio, Adriana passou a preparar refeições no início da pandemia, em março, e distribuir 200 marmitas por dia na Vila Medeiros, região norte de São Paulo. Começaram discretos, sem divulgação, até por medo da formação de filas que pudessem gerar mais contágio. Batizaram o movimento de Quebrada Alimentada. “Não teve planejamento ou estratégia, não sabíamos a duração, o fôlego financeiro. Mas uma pessoa publicou uma foto da ação, que foi compartilhada 11 mil vezes e a coisa estourou. No fim, a repercussão trouxe coisas positivas: doações e oferta de ajuda — a Paola Carosella, o Luca Gozzani, do Fasano, uma igreja do nosso bairro, entre outros”, ela diz. Hoje, além das marmitas, eles conseguem doar cestas básicas e vegetais de agricultura familiar.
A historiadora, que tem a fome no centro de sua pesquisa, aponta que na década de 1970, mais de 60% da população passava fome não pela qualidade dos alimentos, mas por falta de calorias. “Temos melhoras recentes e muito importantes e, nesse sentido, é muito triste o que está acontecendo agora, por mais que fosse previsível que aconteceria quando a pandemia estourou”, afirma Adriana.
“Há uma quantidade de trabalho informal imensa. E esse é o problema da crise: ela acentua as desigualdades sociais e coloca no grupo de vulnerabilidade alimentar uma quantidade de famílias que não estavam lá antes, mas que em situação frágil não vão conseguir se desvencilhar dela. Esse é o problema das crises de fome”, afirma.
Adriana disse que se sente “enxugando gelo” em seu projeto de doação de refeições: resolve o problema por um dia, mas no seguinte a pessoa que foi beneficiada já está com fome de novo. Ainda assim, ela segue na distribuição porque vê a atual situação como emergência. “A solução para a fome precisa se dar em dois níveis, o emergencial e o estrutural. A comida é um princípio básico, como alguém vai procurar trabalho com fome?”
Grande crises de fome sempre levaram à violência
Ela vê a premiação do Nobel da Paz a uma iniciativa contra a fome como um direcionamento do combate ao problema como prioritário nos dois níveis. “Guerra e fome estão muito interligadas. Fome gera guerra e vice versa e grande crises de fome sempre levaram à violência. Ainda não estamos neste momento porque temos segurado as pontas com o auxílio emergencial”, afirma.
Gastronomia social
Assim como Adriana, David Hertz, fundador do Gastromotiva, uma organização que tem como pilares educação, inclusão e combate ao desperdício e que foi responsável pelo Reffetório Gastromotiva nas Olimpíadas do Rio em 2016, acredita que a campanha contra a fome de 2020 pode ter bons efeitos porque cresceu em relação a anos anteriores e vai gerar mais visibilidade. “O tema sempre passou despercebido. É triste ver que evoluímos como nação mas deixamos voltar tantos problemas que já foram mitigados”, afirma.
É uma nova forma de gerar um elo, uma empatia, uma solidariedade de fato
Ele chama a atenção para a participação dos cozinheiros solidários na campanha deste ano. São mulheres empreendedoras que se comprometem a fazer 1,2 mil refeições gratuitas por mês para a sua comunidade e, para isso, recebem apoio da Gastronomiva. “São geralmente mulheres que fazem parte da comunidade, estão na Maré, nos territórios, e já seguram a sua casa, mas tiram dois ou três dias para ajudar os vizinhos. É muito simbólico e é a força dessa campanha”, afirma.
Em 28 semanas, o programa serviu quase 750 mil refeições. “A gente nunca imaginou que ia chegar a esse número ao longo desse ano. A grande preocupação é o que vai acontecer no ano que vem, porque a pandemia está se estendendo demais. Não temos dúvida que vai haver mais necessidade com o fim do auxílio emergencial”, afirma. “Tem muita coisa para ser feita para conseguirmos atacar o sintoma disso tudo, que é a desigualdade social histórica e cultural.”
Apesar da consciência de que o trabalho é árduo, Hertz é otimista com o poder das campanhas. “É uma nova forma de gerar um elo, uma empatia, uma solidariedade de fato. Tem que viver experiências como essa para ganhar consciência e interesse pelo tema.”