A vida lá fora — Gama Revista
Sociedade

A vida lá fora

Com o número de vacinados em alta e o de mortes em queda, voltar a sair de casa e retomar uma rotina pré-pandemia ainda é fonte de medo e insegurança para alguns

Leonardo Neiva 15 de Outubro de 2021
GK Hart/Vikki Hart/Getty Images

Depois de cerca de 70% dos brasileiros estarem vacinados com a primeira dose, e o país caminhar a passos largos para ter metade de sua população completamente imunizada contra a covid-19 — sem contar os que já estão tomando uma terceira dose de reforço —, a média de mortes e casos vem caindo de forma consistente no Brasil há semanas. O medo constante de ser contaminado, que aumentou ao longo de mais de um ano de confinamento, porém, tem feito com que muita gente pense duas vezes antes de sair de casa ou mesmo de tentar retomar uma rotina semelhante à que existia antes da pandemia, mesmo depois de tomar as duas doses.

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Alguns fatores complicadores são as incertezas que cercam o combate à pandemia desde o início, a preocupação com as crianças ainda não vacinadas ou mesmo com os grupos de risco, como pessoas com comorbidades e idosos, em quem as vacinas têm grau menor de eficácia. Por outro lado, o isolamento tão prolongado também pode ser o motivo desse receio indissolúvel, afinal pode trazer sequelas sérias para a integridade psicológica e física, como alertaram diversas vezes especialistas ao longo da pandemia.

Claro que algumas formas de deixar o conforto do lar são mais seguras que outras. Permanecer ao ar livre segue sendo mais recomendável do que em lugares fechados, segundo órgãos de saúde. Lavar as mãos ou lambuzá-las de álcool gel sempre que possível também é obrigatório. E a máscara não perdeu o posto de item indispensável em todos os ambientes, em especial se for de um modelo profissional, que garante mais proteção.

Depois de tanto tempo, existe uma dificuldade natural de retorno. Isso atinge as crianças na volta à escola e os adultos nessa transição

Vivemos um momento ambíguo, na opinião do professor Helio Deliberador, do departamento de psicologia social da PUC-SP. Isso porque, ao mesmo tempo em que há uma grande expectativa por um retorno completo à normalidade, existem previsões de que a pandemia pode voltar a se fortalecer, enquanto a vacinação no país não chegou a alcançar os níveis desejados. “Sem dúvida, depois de tanto tempo, existe uma dificuldade natural de retorno. Isso atinge desde as crianças na volta à escola até os adultos e toda uma sociedade que está passando por esse período de transição”, aponta Helio.

A falta de um posicionamento mais claro e universal do governo e autoridades de saúde, sem uma diretriz explícita de retorno à normalidade, é a principal causa dessa confusão e da dificuldade que muitas pessoas enfrentam para tomar decisões neste momento. Ao mesmo tempo, comércios, restaurantes, parques, entre inúmeras outros tipos de estabelecimento, voltaram a funcionar normalmente por quase todo o Brasil.

O professor lembra também que a questão tem um recorte social e de privilégio relevante. “Algumas famílias com menos recursos não tiveram essa possibilidade [de ficar em casa].”

A vida por um fio

Para muita gente, a pandemia foi um período profundamente traumático, repleto de perdas, e que acentuou nossa consciência do quanto a vida é frágil, diz o psicólogo Yuri Busin. “Isso naturalmente criou um medo nas pessoas de sair de casa e acabou acentuando esse sentimento em quem já tinha predisposição a desenvolver uma fobia social”, afirma Yuri, que é doutor em neurociência do comportamento pela Universidade Mackenzie.

Portanto, é preciso ficar atento. Se esse medo se mostrar controlável, significa que ele está dentro de um padrão de normalidade, considerando o contexto que vivemos. Mas, se só de pensar em dar um pulo na esquina ou uma passada no mercado, a pessoa já começa a suar frio, sofrendo de forma exagerada, o mais recomendado é buscar ajuda psicológica para tentar vencer essa dificuldade, reitera o profissional.

Cara a cara

Entre outros comportamentos cotidianos, a pandemia forçou muita gente a alterar de forma intensa os hábitos de socialização. Por mais de um ano, foi necessário dar adeus aos eventos sociais, às mesas de bar ou aos passeios em shoppings e parques, entre várias atividades antes tão comuns que mal prestávamos atenção a elas. No lugar, entraram as trocas de mensagens, videochamadas e lives, formas importantes de socialização no mundo contemporâneo, mas que, como lembra Yuri, “não substituem o contato físico”. “É uma ferramenta maravilhosa, mas que tem alguns probleminhas. A pessoa perde um pouco o jogo de cintura, não consegue mais se comunicar tão bem quanto antes e não tem mais tanta paciência para esperar ou escutar papos que não quer ouvir.”

Para o psicólogo, as formas de se comunicar e socializar devem permanecer diferentes mesmo no momento de retorno, algo que só deve ser vencido com uma exposição cada vez maior e mais duradoura de pessoas a contatos presenciais — desde que de acordo com as recomendações dos órgãos de saúde.

Filhos pandêmicos

Um fator importante de preocupação é a dúvida de muitos pais sobre o contato de filhos ainda não vacinados com outras crianças, especialmente com a volta às aulas presenciais e a possibilidade de voltar a ter uma rotina de saídas mais constantes com eles.

 Superbomba

Novamente, não há decisões 100% corretas ou erradas. O segredo — que nem é tão segredo assim — é buscar se informar o máximo possível. “Temos que procurar informações muito corretas e, se possível, a opinião de pediatras ou especialistas para entender se estamos colocando nossos filhos em grande risco ou não”, diz Yuri.

Segundo o psicólogo, não pode deixar de constar na balança o fato de que o ambiente escolar é fundamental para a socialização e o desenvolvimento da criança. “Muitos pais com filhos pandêmicos, que viveram seus primeiros anos dentro da pandemia e já voltaram à escola, começam a notar um desenvolvimento muito maior. As crianças passam a ter estímulos diferentes, que não somente aqueles gerados pelos pais dentro de casa.”

A dor do isolamento

Dores nas costas, na coluna ou musculares, problemas de postura, vista embaçada, rigidez no pescoço e enxaqueca. “Tem umas três horas para falar de tudo?”, questiona de brincadeira o fisioterapeuta especialista em neuroanatomia e anatomia humana Mario Sabha, em referência aos inúmeros relatos que tem recebido ao longo desses dois anos de pandemia.

Frutos do isolamento prolongado, problemas como esses se tornaram mais comuns devido a questões como a falta de exercícios, menor quantidade de tempo ao ar livre e uso excessivo de telas. Nesse caso, mesmo fazer exercícios em casa, lembra Mario, não tem o mesmo impacto positivo de ir a uma academia, onde há um acompanhamento profissional mais próximo. “Sair de casa é importante porque a vida é movimento, ela foi feita para a gente socializar. As pessoas são seres emocionais, seres relacionais que pensam. Isso ficou muito claro agora na pandemia, se alguém tinha alguma dúvida.”

Dá para saber que existe uma coletividade quando vejo pessoas lá fora, mesmo que ainda não me relacione com elas

O convívio com outras pessoas é importante não só a nível individual, mas também social, pois ajuda a criar uma maior consciência de coletividade, substituindo a impressão de uma sociedade formada por bilhões de pessoas vivendo isoladamente, afirma o fisioterapeuta. Caso contrário, acabamos resumindo cada vez mais nossa vivência à solidão do trabalho e da tecnologia. “Dá para saber que existe uma coletividade quando vejo pessoas lá fora, mesmo que ainda não me relacione com elas.”

“A companhia das pessoas é uma coisa mágica. Em casa, muita gente anda de esteira se sentindo um hamster. Você está vivendo com você mesmo. Chega a noite, você dorme, e no outro dia começa a mesma rotina sozinho. Aí fala com 800 amigos numa teleconferência, mas continua sozinho.”

A ciência e o incerto

Do ponto de vista científico, a situação é complexa e não há uma solução objetiva. E, por enquanto, não há condição de fazer previsões, diz a médica Sylvia Hinrichsen, consultora de biossegurança da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). “O maior problema é que não sabemos quanto tempo essas imunidades vão durar [com as vacinas]”, explica Sylvia. “Já vimos que, com oito meses, é necessário aplicar um reforço, já vimos que as medidas restritivas ainda são necessárias e já vimos que, quanto mais pessoas vacinadas, menos o vírus circula. E isso é bom, porque faz com que não existam tantas pessoas adoecendo gravemente ao mesmo tempo.”

No entanto, segundo ela, não existe base científica que garanta que, apesar de os números estarem caindo há meses, essa tendência continuará no futuro. “A qualquer momento — e não sabemos como nem se isso vai acontecer —, pode surgir um ponto fora da curva, e aí teremos que reavaliar tudo de novo.”

Vale lembrar que a vacina não breca a transmissão do vírus nem impede o contágio — embora reduza as chances de ele acontecer, assim como previne as possibilidades de agravamento da doença para quem a contrai.

Em média, as vacinas costumam ter menos eficácia em pessoas idosas, um dos principais grupos de risco da doença. Outra barreira que ainda nos impede de visualizar o fim da pandemia é o fato de que uma vacinação universal ainda não é possível, especialmente porque não temos dados suficientes que comprovem a segurança e eficácia da vacina em crianças. Isso sem contar as hordas de indivíduos que questionam a obrigatoriedade de se vacinar, e que têm puxado os números de imunizados para baixo no contexto mundial.

Caminhos possíveis

De acordo com Sylvia, deve-se tentar evitar o medo, mas ter sim cuidado no dia a dia, contornando riscos desnecessários até que estejamos numa situação comprovadamente mais segura. “Temos que voltar a viver o hoje com responsabilidade, vacinando-se e sabendo que são importantes as medidas restritivas, até que os órgãos internacionais, nacionais e locais de saúde decidam, por meio de dados sustentáveis, que é possível ter um relaxamento.”

Daqui para frente, vão surgir novas características da nossa sociedade. Utilizaremos o online e o presencial da melhor forma possível

Para o professor de psicologia da PUC-SP Helio Deliberador, não existe outra solução senão acompanhar com afinco as posições da ciência. “O caminho é sempre atualizar as informações, acompanhar os meios de comunicação que repercutem os posicionamentos científicos e pessoas que tomam as decisões que precisam ser tomadas para um retorno progressivo.”

Ao mesmo tempo, não se deve desprezar a importância do período que estamos vivendo na criação de novos hábitos e formas de viver, que pode deixar uma marca duradoura na sociedade.

“Desta vez a mudança foi muito abrupta, uma grande cisão de comportamento que ficou evidente para todo mundo”, aponta o psicólogo Yuri Busin. “Daqui para frente, vão surgir novas características da nossa sociedade, e nos modelaremos a elas, criando novas ferramentas. Utilizaremos tanto o online quanto o presencial da melhor forma possível. Só é importante que a pessoa esteja sempre mais em contato com a evolução do que a estagnação. Se conseguirmos fazer isso, é natural que exista uma evolução tanto individual quanto em sociedade.”

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