Quem compartilha a vida é mais feliz — Gama Revista
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Depoimento

Quem compartilha a vida é mais feliz

Nunca foi tão importante dividir o cotidiano, as experiências e a vida com o outro. Histórias de quem compartilha a vida com amigos, família, cônjuges e até vizinhos

Manuela Stelzer 28 de Agosto de 2022

Quem compartilha a vida é mais feliz

Manuela Stelzer 28 de Agosto de 2022
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Nunca foi tão importante dividir o cotidiano, as experiências e a vida com o outro. Histórias de quem compartilha a vida com amigos, família, cônjuges e até vizinhos

Fizemos de absolutamente tudo: esgotamos as prateleiras de autoajuda das livrarias, baixamos todos os apps disponíveis de yoga e meditação guiada, e fizemos incontáveis sessões de terapia para nos conhecermos plenamente. A busca pela felicidade se tornou um processo de dentro para fora, emoldurada como uma jornada de autodescoberta. Mas, ao longo do caminho, nunca nos sentimos tão sozinhos. Talvez tenhamos nos esquecido que, na verdade, a felicidade é coletiva, como explica a pesquisadora e autora britânica Ruth Whippman.

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Os efeitos da solidão, segundo pesquisas, podem ser comparados ao do tabagismo, e já é considerada uma epidemia por especialistas. Combatê-la, ainda mais em tempos de excesso de telas e um vírus contagioso, é primordial. Como sugere Whippman, em seu texto ao jornal The New York Times: “Da próxima vez que tiver que escolher entre meditar e sentar em um bar com os amigos para reclamar da aula de meditação, você deve considerar seriamente ir ao bar, não importa o que seu aplicativo de felicidade diga”.

A seguir, Gama reúne seis depoimentos de diferentes pessoas que dividem o cotidiano, o teto e a vida com amigos, família, cônjuges. E que aprenderam que, por mais que doses moderadas de introspecção e solidão sejam necessárias vez ou outra, a vida é mais feliz quando compartilhada.

  • ‘É bom saber que tem alguém olhando pela gente’

    Cloé Multari, 86 anos, dona de casa

    “Eu moro no quarto andar do meu prédio, e a Cidinha, minha amiga, no terceiro. Nossas janelas dão de frente para um prédio empresarial todo envidraçado, então nós conseguimos ver uma a janela da outra. Como moro sozinha, os filhos vivem longe, e ela também já é uma pessoa de mais idade, fizemos um combinado: todos os dias, até às 10h, temos que abrir as nossas janelas, como um aviso de que estamos bem. Se passa desse horário e não vejo a janela da Cidinha aberta, vou tomar providências. É bom saber que tem alguém olhando pela gente. Ainda mais eu e ela, que somos muito amigas. Trocamos receitas, levamos comidas que preparamos uma para a outra. Durante o isolamento, usamos muito o interfone, e conversávamos por lá, já que não podíamos nos reunir.

    Meu prédio todo, na verdade, é como uma família, porque grande parte dos moradores são mais velhos e todos se dão bem. Tínhamos o hábito, inclusive, de nos encontrarmos uma vez por mês, antes da pandemia. Cada encontro na casa de um, e ainda servíamos um lanche. Até o porteiro se tornou amigo. Se não podemos sair e precisamos de uma compra, ele se oferece para ajudar, um sujeito muito gentil. Por isso, apesar de morar sozinha, sinto que tenho resguardo aqui, e amparo para qualquer coisa que precisar. Gosto muito de compartilhar a vida com os moradores,. Aqui, um cuida do outro.”

  • ‘Compartilhar a vida, a cama e o teto demanda trabalho diário’

    Júnior Semeghini, 41 anos, cozinheiro

    “Conheci o Daniel há seis anos, e estamos casados no papel há quatro. Conheci ele entre o burnout e o novo rumo profissional, quando decidi fazer o que sempre amei: cozinhar. Era um período conturbado, ainda estava me recuperando do desgaste mental e emocional. Sendo bem honesto, nem sabia se estava pronto para um relacionamento sério. Mas o amor chega quando tem que chegar. Logo começamos a dividir a vida e a casa, ainda que ele tivesse o cantinho dele. Um teste de como funcionaria a rotina – e funcionou. Decidimos que era hora de encarar o desafio e encontrar uma casa com a nossa cara. Assinamos o contrato do aluguel em nome dos dois e entendemos que dali pra frente seríamos nós para tudo.

    Hoje, vou deitar e acordo todo dia com a responsabilidade de uma vida por vir. Porque, para mim, estar casado é um carimbo de empenho, compromisso, doação. Em tempos de 5G e apps de namoro, é fácil esquecer que nada vem pronto. Que tesão não significa necessariamente amor, que amor não é igual paixão, e que paixão não tem o mesmo peso de admiração. Tenho certeza hoje, e mais a cada dia, que relação se constrói na constância, na conversa e na consideração. Que o foguinho da admiração precisa de lenha todo dia. Que compartilhar a vida, a cama e o teto demanda trabalho diário. Que não tem fórmula mágica, simpatia ou amarração que dê jeito se não houver, de todas as partes, compromisso diário e integral com o nós. Mais honestidade, menos fantasia. Mais mão na massa, menos conto de fadas. Empenho diário na busca do felizes para sempre.”

  • ‘A gente cresce na diferença’

    Laura Capelhuchnik, 27 anos, jornalista

    “No início de 2021, fui para Israel para estagiar em um podcast documental, o Israel Story. Cheguei a procurar opções de aluguel de quarto sozinha, mas era inviável arcar com todos os custos. Fui dividir um apartamento com outras cinco pessoas.

    Logo que fiz a mudança, eu, fumante, escutei a Renata, com quem dividiria quarto, esbravejando no corredor: ‘[os antigos inquilinos] deixaram bitucas em todo lugar, eu odeio cigarro!’. Era visível que teríamos que desenvolver uma comunicação muito boa para a convivência funcionar. Ela é formada em administração, é fã de carteirinha da Demi Lovato, vai a todos os shows, e ama ir ao shopping. Enquanto eu sou jornalista, gosto de ouvir o que a Renata chama de “música velha” e prefiro fazer coisas ao ar livre. Nunca imaginei que dali nasceria uma grande amizade. Demorou um pouco para desapegarmos das aparências, lembro de entendê-la como uma pessoa de opiniões muito fortes mas, ao mesmo tempo, muito aberta a ouvir. Por isso, sentávamos, conversávamos e chegávamos sempre num meio termo. Em noites de ócio, ouvíamos um podcast da minha escolha ou um álbum da escolha dela. Uma vez encontramos a metade do caminho: um podcast de uma artista que ela ama (embora nenhuma das duas tenha gostado do conteúdo no final, risos). São negociações, aprendemos a fazê-las juntas.

    Com ela, foi como se ‘as definições de amizade tivessem sido atualizadas’. Porque temos essa ideia de que uma amizade é fundada em uma base de interesses compartilhada. Mas minha amizade com a Re me mostrou que há coisas muito além, como a capacidade de escutar e de lidar com as diferenças com mais abertura e delicadeza. E quando digo mais abertura e delicadeza, não é só respeitar, mas incorporar aquilo para você em alguma medida. Porque se não acontecesse uma adaptação, um meio do caminho, nossa amizade nunca funcionaria. E a gente cresce na diferença.”

  • ‘A vida era mais urgente’

    Olivia Byington, 63 anos. É escritora, compositora e cantora

    “As relações familiares a gente inventa e depois cultiva. Fazendo uma imagem bem tosca, são plantinhas em vasos que precisam ser regadas ou morrem secas. Não adianta ir regar só no Dia das Mães e no Natal porque já não florescem mais. A pandemia jogou um olhar compulsório sobre isso. De quem você realmente sentiu falta nesses tempos? Com quem você pode contar? Longe de celebrar a pandemia que ainda está entre nós, nem de enaltecer momentos que foram tão dolorosos com milhões de perdas e escassez para tanta gente. Mas tentando ver a metade cheia, lembro os tempos de lockdown como uma das fases mais amorosas e intensas que eu já vivi.

    Minha conduta com o João já tinha desobedecido a muitas regras desde quando ele era pequeno. A recomendação dos neurologistas na sua infância era de que ele vivesse protegido e sem atividades com perigos de queda. Tropeçou muitas vezes, levou boladas na cabeça e chegou a ter uma convulsão num incidente com uma bicicleta. A vida era mais urgente. Durante a pandemia continuamos irresponsáveis. Abrimos a nossa casa pra família que criou praticamente uma bolha, na medida do possível, para sobreviver não só ao vírus, mas ao importante distanciamento social. Desse período muita coisa ficou na gente.

    A vida do João é muito organizada, caso contrário ele se sente mal, fica inseguro e mau humorado. Ele mesmo se protege dos improvisos e faz dos seus horários um expediente rigoroso. Organiza a própria agenda – e a compartilha comigo.”

  • ‘Temos que compartilhar os sonhos, querer ir na mesma direção’

    Letícia Serrão, 42 anos, administradora

    “Eu e meu marido, Fred, sempre gostamos muito de viajar. Quando engravidei da Beatriz, nossa filha, entre 2017 e 2018, a vontade de ter mais liberdade na vida, de ter o tempo a nosso favor ganhou uma força maior. Queríamos criar nossa filha de perto, e não passar nove horas do dia dentro de um escritório longe dela. Quando começamos, alugávamos imóveis em cada lugar, mas sentíamos que havia pouca possibilidade de interação. Com o motorhome, tudo mudou: a casa poderia até ser pequena, mas o quintal é enorme. Usufruímos mais dos espaços públicos. Nas paradas, as pessoas ficam curiosas, querem perguntar, conhecer, oferecer ajuda. A interação com o outro é muito maior.

    A vida na estrada nos tornou mais abertos a conhecer pessoas, para de fato fazermos conexões, que são muito mais profundas e rapidamente estabelecidas. É tudo muito intenso, numa tarde vira-se amigos do peito. As pessoas buscam essa conexão, porque se jogaram no mundo, e parte da aventura é conhecer pessoas. Ensinamos isso à Bia, a importância de fazer amigos, compartilhar os espaços. As amizades ficam mais urgentes, porque se deixar escapar, talvez não tenha mais essa oportunidade. Aproveita o momento, é o que dizemos para ela. É uma vida de muito aprendizado social.

    Se não soubéssemos conviver, não estaríamos há três anos na estrada. É um estilo de vida que demanda uma sinergia muito grande. Mais do que saber compartilhar desde a educação da nossa filha, até o trabalho, o roteiro da viagem, temos que compartilhar nossos sonhos, nossos planos. Temos que querer ir para a mesma direção.”

  • ‘É dividir a casa com pessoas que façam você se sentir em um lar’

    Thais Barbosa, 24 anos, relações públicas

    “Quando entrei na faculdade, saí da casa dos meus pais e fui morar em Bauru. Éramos em nove meninas na república, todas de realidades e contextos completamente diferentes. Lá, precisei entender como as minhas experiências moldaram os meus limites, o que eu gosto de fazer e qual é minha rotina. Aquela expressão, de que o seu limite começa quando o do outro termina, quando você mora em república, é a regra básica.
    Dividir uma casa é dividir muita coisa. Desde o início me senti muito acolhida, porque não estavámos lá só para rachar as contas, só porque era mais barato. Todos saíram de suas realidades para morar em uma cidade totalmente nova, e assim a república vira sua família, e as pessoas, suas referências.

    Os desentendimentos que aconteciam eram muito relacionados a questões simples do dia a dia. Uma calcinha que ficou pendurada no banheiro, a cozinha que ficou desorganizada, uma louça sem lavar. Entendemos que era importante verbalizar os incômodos, por isso organizávamos reuniões, com data marcada mesmo, para conversar. Assim, impúnhamos limites e mantínhamos a ordem da casa, os combinados, e partilhávamos o cotidiano com tranquilidade.

    Sempre preferi viver em conjunto. Claro que depende muito do contexto, se é por vontade ou necessidade, por exemplo. Mas, para mim, compartilhar a vida é compartilhar um mundo novo. No meu caso, quando mudei para Bauru, era tudo novidade: a cidade, as pessoas, os medos. Quem estava ao meu lado me orientou, me acolheu. Me senti em casa ao lado de pessoas que tinham amor por aquele espaço, e por mim também. Compartilhar a vida é se sentir à vontade com o outro.”