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ConversasBetina González: "No dia em que parar de me surpreender com o que escrevo, não escreverei mais"
Autora da coletânea de ensaios de literatura “A Obrigação de Ser Genial”, escritora argentina aponta excesso de cobrança sobre as mulheres na arte
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Betina González: “No dia em que parar de me surpreender com o que escrevo, não escreverei mais”
Autora da coletânea de ensaios de literatura “A Obrigação de Ser Genial”, escritora argentina aponta excesso de cobrança sobre as mulheres na arte
Embora escreva desde os oito anos de idade — quando, na volta da escola, os versos começaram a brotar em sua cabeça feito um raio de sol —, a autora argentina Betina González sempre sentiu uma autoexigência excessiva na profissão, que inicialmente considerava uma questão pessoal. Só quando, muitos anos mais tarde, traduziu para o espanhol a obra seminal da historiadora Gerda Lerner, “A Criação do Patriarcado” (Cultrix, 2019), percebeu que o problema era também compartilhado por todas as mulheres que ousavam escrever numa área ainda dominada por homens.
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“A história do patriarcado explica por que as mulheres precisam trabalhar mais para chegar ao mesmo lugar que os homens. Se isso acontece no nível social, imagine na área da cultura”, diz em entrevista a Gama. A autora, uma das presenças mais celebradas na última Feira do Livro, em São Paulo, publicou recentemente seu primeiro livro aqui no Brasil. “A Obrigação de Ser Genial” (Bazar do Tempo, 2024) leva no título o nome do artigo que trata justamente dessa pressão desproporcional sobre as mulheres para surpreender em tudo que escrevem — e que acabou por excluí-las do cenário literário ao longo de séculos.
Como González escreve na obra, “a genialidade é a resposta favorita do campo literário para dar conta das mulheres escritoras como anomalias ou exceções.” Além de dificultar o caminho para chegar às grandes editoras, enquanto o homem só precisa ser “bom, aceitável ou francamente medíocre”, nas palavras da autora, essa pressão chega a aumentar as dúvidas existentes entre as escritoras, dificultando até mesmo que elas se identifiquem como tais.
Apesar de seus livros de ficção ainda não terem saído por aqui, González possui na carreira publicações bastante ecléticas. Se “Arte Menor”, sua estreia na literatura, trata de uma mulher que investiga a identidade do pai através das esculturas com as quais eçe presenteava as amantes, o romance “Las Poseídas” trata de uma amizade juvenil marcada pela rebeldia e o volume de contos “El Amor Es una Catástrofe Natural” lida com o amor em suas variadas formas e linguagens.
“Sempre tive uma capacidade que me surpreende de, na hora de escrever, tentar preservar uma certa ingenuidade, uma atitude mais infantil ou lúdica, de brincar com a escrita”, afirma a escritora. Mas até mesmo essa variedade literária lhe causa alguma dor de cabeça num meio editorial que ainda separa autores por caixas — no caso das mulheres, em geral variando entre temas como maternidade ou feminismo. “Acabo sendo obrigada a procurar editoras diferentes, porque os editores esperam que você escreva sempre a mesma coisa”, conta.
No papo com Gama, González trata da capacidade do escritor de se surpreender constantemente com aquilo que bota na página em branco e aborda as diferentes facetas da ficção e autoficção, apontando ainda os limites impostos pela autocensura na arte contemporânea.
Não me identifiquei como escritora nem depois da publicação do meu primeiro livro, mesmo tendo ganhado um prêmio importante
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G |Como escritor, sinto que todo mundo tem essa pressão de surpreender, de ser genial. Mas por que, como você desenvolve no livro, ela atinge mais fortemente as mulheres?
Betina González |A história do patriarcado começa na época dos assírios. Traduzi o livro “A Criação do Patriarcado”, de Gerda Lerner, há alguns anos para uma editora argentina. É muito chocante, porque ela é uma historiadora que consegue comprovar que a dominação do homem sobre as mulheres foi um ensaio que precedeu a dominação de classe e deu aos homens da época o modelo para dominar outros homens. Começaram com suas próprias mulheres, mais tarde escravizaram as mulheres dos adversários nas guerras e depois perceberam que também podiam escravizar os homens. Então a história do patriarcado explica porque as mulheres precisam trabalhar mais para chegar ao mesmo lugar que os homens. Se isso acontece no nível social, imagine na área da cultura. A grande armadilha do patriarcado é convencer as mulheres de que não somos um coletivo, porque mulheres das classes mais altas têm maior acesso à riqueza e a alguns direitos. Ou seja, a divisão de classes funcionou muito bem para evitar que haja um coletivo organizado. As que conseguem ter uma educação superior e escrever têm de ultrapassar a barreira de ser publicadas e lidas num cânone predominantemente masculino. Como poucas de nós chegam lá, você tem que ser realmente excelente. Por outro lado, homens bons ou até medíocres conseguem publicar. Isso se vê também nos chefes das cátedras nas universidades. Altos cargos em grandes grupos editoriais da Argentina são ocupados por homens. E digo isso depois de ter lido muitos diários de escritoras de diferentes partes do mundo. Esses depoimentos me convenceram do que eu sentia. A autoexigência não era algo pessoal e sim um dos defeitos desse sistema patriarcal.
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G |Você ainda lida com essa obrigação de surpreender? Como faz para controlá-la?
BG |Não é algo controlado. Faz parte da neurose e continua acontecendo. Sempre tive uma capacidade que me surpreende de, na hora de escrever, tentar preservar uma certa ingenuidade, uma atitude mais infantil ou lúdica, de brincar com a escrita. A questão da demanda acontece em uma segunda instância, quando você está corrigindo e começa a pensar que aquele livro vai ser lido por um editor, por um público. Livros publicados por mulheres também costumam ser muitos mais polidos, muitos mais corrigidos, enquanto os homens costumam publicar seus livros muito mais próximos dos manuscritos que enviaram. Há exceções, mas essa é a percepção de muitos editores que conheço.
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G |Isso também faz com que as mulheres demorem mais a se reconhecer escritoras? Você conta no livro que se tornou escritora aos oito anos, mas quando de fato se identificou como uma?
BG |Sim, totalmente. Nunca me apresentava como escritora. Quando precisava preencher algum formulário, sempre dizia que era professora. Não me identifiquei como escritora nem depois da publicação do meu primeiro livro, mesmo tendo ganhado um prêmio importante. Acho que comecei a fazer isso mais ou menos depois do terceiro que publiquei. Quer dizer, demorei muito para conseguir assinar Betina González, escritora, que me parecia um nome muito grande. Esse é outro dos efeitos dessa censura ou autocensura.
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G |Para uma escritora, a jornada para publicar ainda é mais exigente do que para os homens? Que mecanismos atuam nesse sentido?
BG |Parece que está um pouco melhor. Agora tem mais mulheres publicando, e mais jovens também. Mudou aqui em parte por causa da onda feminista na Argentina desde 2015. Porém, acredito que ainda existam muitos mecanismos invisíveis porque, embora haja mais mulheres publicando, elas também são obrigadas a cobrir determinados temas. É mais fácil para uma mulher publicar livros sobre violência de gênero ou questões consideradas femininas, itens da agenda, do que um livro sobre carros ou motocicletas, coisas assim. Pode-se pensar que, depois que alguém publica vários livros, isso não aconteceria mais. Mas aconteceu comigo quando apresentei um manuscrito a uma editora, um romance curto de 90 páginas. Eles me disseram que era muito curto e pediram para torná-lo mais longo. Só que a mesma editora tinha em seu catálogo livros curtíssimos escritos por homens. Então tudo bem um homem escrever um romance curto, mas se a mulher faz isso, parece que não deu certo, que não virou um grande romance.
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G |De onde vem essa visão do que seria literatura feminina e masculina? Para “surpreender” ou ser aceitas, escritoras precisam escrever sobre temas tradicionalmente considerados masculinos?
BG |Isso já existe há muito tempo. Nós mulheres sempre lutamos contra rótulos como literatura feminina ou literatura “rosa”. Tem mudado graças ao feminismo. Então, se for mulher, há uma pressão para você dizer algo sobre a maternidade, mesmo que não tenha vontade de escrever sobre isso. Tem livros que não são feministas e aparecem na seção de feminismo, apesar de banalizarem a luta. Essa é mais uma das armadilhas do mercado. Como é um negócio, os editores sempre tentam prender a escrita em rótulos, e infelizmente isso é muito mais tendencioso para as mulheres do que para os homens. É preciso estar atento contra isso. É por isso que escrevo sempre livros muito diferentes entre si. Não que eu tenha um plano deliberado contra o mercado, mas minhas preocupações são muito diversas, então acabo sendo obrigada a procurar editoras diferentes, porque os editores esperam que você escreva sempre a mesma coisa. Isso acontece com homens e mulheres. Se um livro fez sucesso, querem que você o repita. Me parece que há algo de muito capitalista e prejudicial à arte nessa ideia.
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G |No livro, você faz uma defesa da ficção e da imaginação. A tendência da autoficção vai um pouco contra isso? Ou não, considerando que tudo que escrevemos é uma ficcionalização?
BG |Toda escrita trabalha com a imaginação, a escrita de si também. O problema da autoficção é que às vezes o termo é usado para falar de livros que não trabalham a linguagem. Me parece que, se há imaginação, há também uma atitude perante a linguagem. E alguns livros têm mero valor de testemunho, não os considero literários. Tem gente que conta um pouco de sua vida sem nenhum conhecimento ou intervenção no idioma. É um tema que abordo no meu segundo livro de ensaios que saiu agora em agosto [ainda sem previsão de publicação no Brasil]. Não sou contra autoficção, mas sim contra esse rótulo como desculpa para livros que não têm histórias interessantes a contar nem trabalham a estética da linguagem.
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G |Existe hoje um medo maior de sair dos limites da realidade na literatura?
BG |Desde que publiquei este livro, em 2021, e depois da pandemia, tenho notado a publicação de mais obras de pura imaginação. Por exemplo, muitas distopias ou trabalhos que exageram questões do presente para imaginar como seria um futuro, se o mundo em que vivemos agora fosse dominado pela inteligência artificial ou então o que aconteceria caso a pandemia tivesse sido diferente. Parece-me que a covid abriu a porta para muitas editoras publicarem mais histórias imaginativas. Vejo isso pelo menos na Argentina.
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G |Hoje a autocensura é maior na arte do que no passado? Como isso impacta a capacidade da literatura contemporânea de surpreender?
BG |Isso também está mudando rapidamente, mas acredito que os últimos anos foram marcados por uma grande censura de muitos autores em relação ao politicamente correto, também pela cultura do cancelamento nas redes. Vejo muito isso nos alunos das minhas oficinas, na forma como comentam os textos não só de autores famosos, mas os seus próprios. Me surpreende descobrir que pessoas muito jovens censuram os seus pares pela utilização de um determinado termo. Por exemplo, tive um aluno com dificuldade de escrever em seu romance que um personagem achava a protagonista feia. Porque ele tinha medo de, como autor, ser acusado de ter essa opinião e tratado como sexista. Considero um problema sério essa cultura, que é importada dos EUA, uma sociedade muito hipócrita, que usa estratégias para evitar os verdadeiros conflitos, os conflitos de classe do capitalismo. Trazer isso parece muito prejudicial para a América Latina. Não tem nada a ver com a nossa realidade, com a forma como nos relacionamos.
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G |Pratico com frequência um exercício que você cita em “A Obrigação de Ser Genial”, de ir abrindo livros só para ver como o autor começa a história. Por que esse fascínio por inícios de narrativas? E por que é tão difícil começar a escrever um livro?
BG |Num livro narrativo, o que procuramos é saber o que vai acontecer ou o que aconteceu com determinado personagem. Sentimos isso desde crianças, quando nos contam histórias ou vamos ao cinema ver um filme. Lemos narrativas por essa razão e elas têm que ser capazes de nos dar isso. Sou contra livros que dizem que isso não é necessário, acredito que um bom romance tem que ter uma história. E acho que a curiosidade é inerente ao ser humano, nos perguntarmos quem somos e de onde viemos. As histórias criam comunidades. Então o início dos livros tem que ser uma grande promessa que se cumprirá ao longo das páginas. Tudo está em jogo para um narrador: a promessa da história, a aposta estética e também tem que haver uma questão política ou ética no início de um romance. Portanto, há muitas coisas necessárias no início para que a história seja intrigante e nos deixe curiosos. Em “A Metamorfose”, há uma questão estética e ética. O que é ser homem sendo empregado, sendo explorado? Onde está a humanidade de uma pessoa? Tudo isso está no início do livro. Os grandes romances também trazem essas questões.
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G |Existe um foco um tanto exagerado, até uma certa mistificação em torno do processo criativo do escritor? As pessoas têm a ideia de uma espécie de fórmula mágica para escrever?
BG |Não há fórmula mágica. Se existisse, não seria arte. A arte é feita de variação e contraste com a tradição. Você não pode sempre fazer a mesma coisa, os próprios leitores e espectadores pedem coisas diferentes. Lemos Flaubert e adoramos porque ele é do século 19, mas se um autor contemporâneo hoje escrevesse como Flaubert, provavelmente não o leríamos, porque já conhecemos isso. Queremos algo diferente, que nos surpreenda e desafie intelectualmente. A palavra “técnica” me parece horrível quando falo de arte. Mas a pergunta é boa, porque muitos vêm questionar isso em oficinas ou universidades. Para mim, é algo que não pode ser ensinado, não há técnica para transmitir. O que se transmite nessas oficinas é uma atitude perante o próprio trabalho e o dos outros. Uma atitude crítico-criativa e lúdica. O que se ensina, acima de tudo, é a ler o que você escreveu e saber se está ou não perto de atender a todas as variáveis daquela forma literária. Por exemplo, a variável da história ou do romance. Acredito que a arquitetura da forma é algo que só se aprende na prática e é o que se trabalha nas oficinas. Mas não existe fórmula.
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G |Você às vezes se surpreende com aquilo que escreve?
BG |Sim, sempre me surpreendo, felizmente. No dia em que parar de me surpreender com o que escrevo, acho que não escreverei mais. Começo a escrever sabendo um pouco do que vai sair, mas nem tudo. E o que há de mais interessante é encontrar no processo coisas que você não imaginava. Faz parte do processo criativo. Esses grandes momentos de surpresa para o autor certamente serão os mesmos momentos de surpresa para o leitor. Porque são aqueles em que o texto se volta claramente sobre si mesmo e abre uma nova porta. Um personagem que você pensava que iria fazer uma coisa, mas outras possibilidades se abrem. Esse é o sentido da leitura. Quando você lê um livro autêntico, também percebe essas áreas de interesse do texto.
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G |Hoje temos muito mais escritoras com destaque na literatura. Significa que estão conseguindo romper essas amarras? Como contar novas narrativas sobre mulheres escritoras, que as tire desse pedestal da obrigação da genialidade?
BG |Está mudando, mas há sempre formas novas de censurar as mulheres. Especialmente agora na Argentina, vivemos um momento político difícil, em que muitos direitos femininos estão retrocedendo em todo o país. Talvez isso não seja tão sentido no mundo literário, mas existe a nível de direitos, o que também vem acontecendo nos EUA e em outros lugares. Francamente, como mulher e escritora, o fato de os direitos reprodutivos e ao aborto serem discutidos é um problema. A pressão da mulher que escreve nem sempre é só no momento de escrever, mas dentro de um sistema que a obriga a ser mãe, a trabalhar um certo número de horas, o que impacta a escrita. E, como eu disse, no mercado existem outras vias invisíveis muito perigosas. Não sei se há isso no Brasil, mas na Argentina, depois da onda feminista, certos eventos literários passaram a ser obrigados a convidar um certo número de mulheres para que haja equilíbrio. Embora possa ser uma medida interessante, não me serve de nada sentar num painel com sete homens que não leram meus livros. Isso aconteceu comigo na Espanha. Então é um problema, porque aquele corpo feminino está ali apenas cumprindo uma cota. Devem ser feitas mudanças mais profundas nos programas universitários e no ensino secundário, o que tem acontecido na Argentina, mas não de forma ampla, e também na maneira como as obras circulam e os autores são lidos.
- A Obrigação de Ser Genial
- Betina González (trad. Silvia Massimini Felix)
- Bazar do Tempo
- 240 páginas
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